Em novembro de 2015, a barragem de Fundão, da mineradora Samarco, rompeu e a onda de rejeitos deixou um rastro de destruição. Dezenove pessoas morreram, o rio Doce foi poluído e vilarejos desapareceram e viraram lugares fantasmas. Bento Rodrigues, subdistrito histórico de Mariana, foi destruído. Era lá que Antônio Martins Quintão morava. É para lá que ele volta sempre que pode para encontrar suas memórias.
Veja o depoimento dele ao Fundo Brasil:
“Minha mulher falou: por que tanta zoeira assim? Eu olhei e vi a lama chegando com 15 metros de altura. A barragem havia estourado. Falei: e você está aí de boca aberta ainda? Voei para dentro de casa, peguei a chave da caminhonete e sai salvando as pessoas pela rua. E a lama atrás da gente. Na rua, tinha um homem de 86 anos, coloquei na caminhonete, ele caiu, voltei e peguei de novo.
Quando chegamos no lugar que sobrou de Bento Rodrigues, no alto, não tinha saída. Ficamos ilhados, assistindo. Tirei pessoas sem roupa da lama. A lama arrancava as roupas das pessoas todas. Vi gente machucada.
Nessa hora tinha que salvar quem achava na reta. Não dava para olhar bens materiais. Deixei R$ 3 mil dentro de casa, larguei tudo.
Eu tinha uns 140 passarinhos em casa…
Minha vizinha, a vó do Tiaguinho, apareceu toda suja de lama após ser arrastada. Ela não morreu, mas o Tiaguinho morreu. Todo dia ele pedia um picolé para o pai. A lama o pegou dentro de casa. A avó falou: Tiaguinho, que zoeira é essa? Quando falou, sentiu a parede da casa caindo e o menino escapou da mão dela e desapareceu. Quando foi salva, perguntava: cadê o meu neto? Eu falava: não estou sabendo. Ele tinha sete anos, a vida inteira pela frente.
Teve um pai de duas crianças que me viu salvando as pessoas com a caminhonete enquanto ele estava indo embora com a lama. A filha dele também escapou das mãos. Ele conseguiu sair.
Depois que a lama passou pela minha casa, foi lá para baixo, não achou passagem e voltou arrancando tudo que estava na frente. Foi questão de oito minutos.
Da minha casa não tem mais nada. Era uma casa chique demais. Tinha 30 sinos do tempo que eu mesmo fazia, de bambu, de taquara. Só consegui salvar a caminhonete.
Morei a vida inteira aqui. A casa do meu pai era centenária. Desapareceu tudo. Tem muita história para contar aqui.
Tem dia que bate uma saudade, eu cismo e quando vejo já estou descalço, andando por Bento Rodrigues. Outro dia tentaram me tirar e eu falei: ô rapaz, você já me pagou alguma coisa, me indenizou? Eles não têm resposta.
Antes do estouro da barragem, tinha uma detonação da mineração ali em cima e todo dia balançava nossas casas. A gente achava que a barragem poderia romper, mas não esperava isso. A Samarco fazia reuniões e dizia que estava tudo sob controle, que não tinha perigo nenhum.
Tenho direito de entrar em Bento Rodrigues a hora que eu quiser. Tudo isso aqui é nosso. Já falei com o policial, já falei com todo mundo. Não mexe comigo não. Entro numa boa, saio numa boa.
Fico andando, vou lá na minha casa onde não resta nada. Às vezes deito no chão da lama, onde ficava minha casa. Sei onde ela está por causa de um pé de manga que sobrou.
Foi um trem muito esquisito. Só a gente que passou para saber. Gosto de contar para todo mundo porque assim desabafo. Falaram: você está famoso. Mas famoso por causa de um trem ruim desse?
Minha casa era simplesinha, mas eu construí com a minha história. Cadê a minha história?
Minha casa tinha duas salas, três quartos, uma área de varanda grandona, uma cozinha, uma mesa de concreto com 12 lugares. Precisou de oito homens para instalar essa mesa. Chega lá e procura ela agora. Não vai encontrar.
A gente tem que contar essas histórias porque é a realidade da vida.”
Saiba mais sobre o projeto do MovSAM (Movimento pelas Serras e Águas de Minas), apoiado pelo Fundo Brasil e visitado em junho deste ano.