Unidades superlotadas e insalubres, escassez de acesso à água, luz do sol e alimentação adequada, negligência médica, aumento de casos de tortura e dificuldade em denunciar maus tratos são alguns dos elementos que compõem a complexa realidade do sistema carcerário brasileiro. O Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking de países com o maior número de pessoas presas no mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da China, de acordo com dados divulgados pelo Ministério da Justiça.
Na última década, o país testemunhou um rápido processo de encarceramento em massa, afetando principalmente a população negra e de baixa renda, representando 68,2% do total, conforme dados recentes do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Diante dessa dura realidade de violação dos direitos humanos, emerge o projeto Escritório Social, idealizado pelo Núcleo Periférico em Curitiba. O projeto é apoiado pelo Fundo Brasil por meio do Edital Porta de Saída: Direitos e Cidadania das Pessoas Egressas do Sistema Prisional. O projeto atende pessoas em situação de vulnerabilidade social – desde pessoas em situação de rua a pessoas em situação de carcere com uso de tornozeleira, pessoas egressos e egressas do sistema prisional -, por meio da ação coletiva, construir caminhos de busca por dignidade e direitos.
A OFICINA
Fitas métricas, tesouras, tintas, telas, tecidos e uma máquina de costura têm sido alguns dos principais itens no processo de criação da primeira coleção experimental de roupas do Núcleo Periférico. As peças são desenvolvidas a partir das aulas de corte e serigrafia oferecidas pela associação. A ideia é proporcionar formação de alta qualidade e promover a sustentabilidade do espaço a longo prazo.
Por meio de um processo fluido e em constante diálogo com o público, a coleção experimental vai contra as normas impostas pelo mercado da moda e pelos grandes desfiles, que valorizam grandes coleções, recursos abundantes, rapidez na execução e consumo acelerado. Um dos pilares fundamentais da marca é a construção coletiva, visando à consolidação da associação e ao fortalecimento de todos os envolvidos. Cada pessoa importa, cada história é única.
O ateliê-escola estabelecido na sede da organização, localizada no centro de Curitiba, vai além da produção de roupas; ele cria humanidade e oferece possibilidades de futuro para pessoas que saíram do sistema prisional, ampliando suas perspectivas de trabalho através de sua nova marca de roupas.
Sob a orientação da cientista social e pesquisadora Aline Lopes, também conhecida como Mamacita Lopes, as oficinas fazem parte do contexto de apoio proporcionado pelo Núcleo Periférico por meio do projeto Escritório Social, apoiado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos. O projeto tem como foco a oferta de assistência jurídica e psicossocial, formações em criminologia e cursos profissionalizantes para pessoas em situação de vulnerabilidade social. “A oficina não se trata apenas de capacitação, mas também de empoderar as pessoas para poderem sair dessa situação”, descreve Aline sobre a motivação por trás da oficina de costura.
Neste primeiro estágio, há um processo de criação de peças menores, chamadas de “drops“, que são criações feitas em um curto prazo, experimentando estilos do cotidiano para consolidar a identidade do ateliê-escola. “Estamos nesse processo que eu costumo chamar de costura freestyle, porque a produção de roupas vai se desenhando conforme o trabalho avança,” destaca a socióloga.
O ateliê do Núcleo reúne cerca de 20 participantes na oficina, em um formato de aprendizado coletivo de todo o processo que envolve a criação de roupas. “A proposta desse formato é que todos aprendam todo o processo: costura, corte, modelagem, acabamentos e fechamento, saindo da ideia linear de aprendizado,” explica Aline. Nesse sentido, a noção de dignidade, apoio e parceria vai se desenvolvendo entre os participantes, e a oficina acaba desempenhando um papel fundamental no fomento à autonomia, confiança e oportunidades para novos horizontes. Tornando-se um espaço de referência em transformação social para egressos do sistema prisional. “É um trabalho de longo prazo, de reconstrução de trajetória e de melhoria das condições de existência,” destaca.
CONHEÇA O NÚCLEO
Composto em sua maioria por pessoas das periferias de Curitiba, o Núcleo Periférico iniciou sua atuação há dez anos, concentrando esforços em ações de combate à violência policial, regularização de moradias, luta pelo desencarceramento e, principalmente, o resgate da juventude periférica por meio da educação e da arte.
O apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos desempenhou um papel importante no desenvolvimento do projeto, fornecendo apoio para o fortalecimento institucional da organização, o que possibilitou a estruturação da sede e, consequentemente, da oficina. “O apoio do Fundo Brasil foi fundamental para nós começarmos este trabalho que temos desenvolvido no núcleo. É um respaldo que nos permite dar atenção às pessoas que queremos ajudar,” enfatiza Aline.
O Núcleo Periférico, por meio deste projeto, busca não apenas oferecer assistência imediata, mas também qualificar e fortalecer pessoas egressas do sistema prisional, proporcionando-lhes a oportunidade de uma vida melhor. Este é um exemplo notável de como a costura e a cidadania podem se unir para transformar vidas e comunidades inteiras.