Na política não existe o acaso. Tudo que acontece tem razões determinadas em função de comportamentos que se padronizam e definem a conduta de agentes públicos e privados. Para Tocqueville “o acaso só produz o que estava preparado anteriormente”. A vontade humana entra como um elemento que confere o tom de farsa e tragédia aos acontecimentos.
No Brasil, pode-se dizer que ao acaso se sobrepõem o descaso e a impunidade. Só isso explica os acontecimentos desta semana em Roraima, onde dez índios foram feridos à bala pelos capangas do fazendeiro Paulo César Quartiero, que lidera o grupo de seis arrozeiros de Roraima instalados de má-fé dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Os arrozeiros se recusam a aceitar a decisão do governo de reconhecer os direitos dos índios, resistem a sair da terra, impedem o trabalho da Polícia Federal, destroem pontes e estradas, utilizam bombas e armamentos pesados, desafiam o Executivo e levam o Supremo Tribunal Federal a suspender a operação de retirada dos invasores.
Não é a primeira vez que os índios da Raposa Serra do Sol sofrem ataques. Segundo o Conselho Indígena de Roraima, desde que se iniciou o processo de demarcação, nos anos 70, 21 índios foram assassinados em decorrência da disputa pela terra. O que mais espanta é que esse quadro de violência seja fortemente apoiado pelo governador do Estado, José de Anchieta, e por segmentos da política nacional que manipulam fatos para afirmar que se trata de um conflito entre produtores – em nome do que se justificam os desmandos e o tratamento benigno que lhes é conferido – e índios terroristas, que pretendem inviabilizar economicamente Roraima e até mesmo entregá-la a um protetorado da ONU. Numa verdadeira declaração de guerra aos índios sustenta-se um estado de beligerância permanente, buscando criar o pano de fundo para justificar a negação dos seus direitos.
Com uma Constituição que garante o direito à diversidade como característica fundamental de um país mais rico e solidário, o conflito na Raposa Serra do Sol ecoa como o último recurso daqueles que só conseguem ver os índios como coadjuvantes, jamais como protagonistas do processo de desenvolvimento nacional, em condições de igualdade com os demais brasileiros.
De nada adianta lembrar todos os argumentos que amparam os direitos dos índios da Raposa Serra do Sol. A área foi demarcada durante o governo Fernando Henrique Cardoso e homologada pelo governo Lula em 2005. Os ocupantes da terra tiveram ocasião de contestar o processo. A quase totalidade de não-índios que chegaram a ocupá-la de boa-fé foi indenizada ou reassentada. Os seis arrozeiros que ainda resistem a sair instalaram-se ali no início dos anos 1990 e ampliaram sua área de produção, mesmo sabendo tratar-se de terras da União.
Todas as terras indígenas em Roraima, que correspondem a 46% do território do Estado, não o inviabilizam. Os 54% restantes equivalem à soma da extensão de Rio de Janeiro, Espírito Santo e Alagoas, ocupados por uma população que não chega a 400 mil habitantes. Terras indígenas são bens da União, o que define a obrigação do Estado de zelar por sua proteção, afastando o argumento da ameaça à soberania nacional que teima em ser ressuscitado, conforme a conveniência política da vez. Os índios têm a posse, mas não o domínio da terra. Em 1995, o então Ministro da Justiça, Nelson Jobim, deixou claro que terra indígena e presença do Exército não se excluem, ao despachar favoravelmente à declaração da posse indígena permanente sobre extensa área de fronteira na Amazônia.
No caso de Roraima, a verdadeira questão é o desrespeito ao Estado de Direito em função de interesses econômicos que beneficiam alguns empresários e autoridades locais pouco preocupadas com um modelo de desenvolvimento sustentável e com as condições de vida da população indígena em geral. Para o então procurador da República, Gilmar Ferreira Mendes, hoje presidente do Supremo Tribunal Federal, a disputa sobre os direitos indígenas configura “inequívoca prova da nossa capacidade de desenvolver uma sociedade aberta e pluralista. Uma sociedade que reconhece a limitação de seu catálogo de valores e, por isso mesmo, admite e respeita concepções e valores diversos. Uma sociedade consciente de que seu modelo de desenvolvimento não é único, nem superior”.
Infelizmente, parece que ainda estamos longe de alcançar essa consciência. Os acontecimentos na Raposa Serra do Sol e a recente absolvição do fazendeiro Vitalmiro Bastos, acusado de ser o mandante do assassinato da irmã Dorothy, no Pará, fazem parte do ciclo histórico de impunidade dos crimes praticados contra os direitos humanos no Brasil. Um Judiciário moroso e não raro pouco disposto a contrariar os interesses das elites, ao lado de uma polícia despreparada e vulnerável aos poderes locais constituem a moldura na qual se assenta o quadro de violência permanente dos conflitos sociais no país.
No caso Dorothy, o Executivo e o Judiciário sabiam da leniência da Justiça paraense em punir os crimes do latifúndio. Mesmo assim, o Superior Tribunal de Justiça rejeitou, em 2005, o pedido para que o caso fosse julgado pela Justiça Federal. Quando o fazendeiro é absolvido e os holofotes da imprensa se voltam novamente para o caso, ministros do Supremo e o próprio presidente da República se espantam e se dizem indignados. Aqui, como na Raposa Serra do Sol, não há acaso: sobra descaso e impunidade.
Ana Valéria Araújo é advogada, mestre em Direito Internacional pelo Washington College of Law, sócia fundadora do Instituto Socioambiental e coordenadora executiva do Fundo Brasil de Direitos Humanos