Mulheres negras, pobres e periféricas. Nordestinas ou filhas de nordestinos. Marginalizadas. Vítimas de preconceito e de violações de direitos. Mães que precisaram se unir para enfrentar uma política de encarceramento que leva os seus filhos adolescentes para unidades da Fundação Casa (antiga Febem). Para a tortura, os maus tratos, o desrespeito.
Foi assim que Miriam Duarte apresentou a Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos) no Fórum Social Mundial, realizado em Salvador (BA) entre os dias 13 e 17 de março. Ela participava de uma roda de conversa sobre a seletividade do sistema penal e chegou às lágrimas ao resumir a luta que protagoniza ao lado de outras mulheres desde 1998.
“Nos deparamos com um grau muito alto de tortura. Foram momentos dolorosos, pois os hematomas eram visíveis pela face, braços e pernas. E também pelos dentes quebrados dos jovens”, recorda.
O debate foi uma das atividades da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, levada por organizações apoiadas pelo Fundo Brasil ao Fórum Social Mundial. A agenda é uma ação coletiva de lutas que busca reverter a histórica violência do país contra as pessoas mais pobres e fortalecer a construção de um caminho voltado a uma sociedade sem opressões e sem cárceres. Temas como cárcere e gênero e racismo institucional também fizeram parte do ciclo de debates.
Foi nesse cenário de encarceramento em massa, descrito por Miriam como monstruoso, que surgiu a associação de mães e familiares em busca dos direitos humanos para seus filhos adolescentes.
“Sempre tivemos como objetivo principal denunciar esse estado criminoso e genocida. Somos mulheres de dormir dentro de unidades da Febem e também mulheres de levar esperança e paz para os meninos e seus familiares”, relata Miriam. “Mas a senzala é cheia de crueldade e a barbárie continua. Muda-se o nome da Febem para Fundação Casa, porém a cultura do encarceramento e tortura continua”, denuncia.
A seletividade que as mães e tantos presos e presas sentem na pele é também velha conhecida de organizações que há décadas lutam contra o encarceramento em massa.
“A seletividade começa na rua, vai para o Fórum e está nas cadeias, o tempo todo. Ela não para”, afirma Paulo Malvezzi, da Pastoral Carcerária. “Os agentes policiais selecionam os perfis, julgam de acordo com sua noção de classe social, raça, com todos os preconceitos. No curso da pena também se fazem seleções entre as pessoas que serão mais vitimadas”.
As travestis, por exemplo, muitas vezes não têm acesso a nenhuma organização que possa ajudá-las em seus processos ou famílias presentes para fazer o “corre” até o Fórum, até a Defensoria Pública.
Durante a roda de conversa, Paulo falou sobre a autocrítica que levou organizações da sociedade civil a darem um salto e criarem em 2013 a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, definida como o resultado de um percurso histórico com alguns avanços, mas também muitas dificuldades e erros.
Na avaliação dele, a ação política não pode mais ser apenas reparadora de um sistema que é essencialmente seletivo. Precisa ser uma agenda de construção de um mundo sem cárcere, abolicionista. Paulo lembrou que a liberdade é a primeira demando dos presos nas conversas com a Pastoral.
“A gente precisa tirar as pessoas da cadeia”, reforçou. “A agenda de desencarceramento não é uma utopia, é um programa de política pública”.
Além do discurso, a Pastoral defende também uma mudança na prática, ou seja, ter os próprios presos, presas e egressos do sistema penal como protagonistas dessa luta.
“Se não trouxer essa energia para a discussão política, vamos caminhar de novo para tudo que a gente já fez”.
Wagner Moreira, do Ideas, também falou sobre a importância de ter os próprios presos ou egressos nos debates e nas lutas.
Ele defendeu que a agenda do desencarceramento seja apresentada dentro de um debate eleitoral em que já estão pautadas questões como a militarização, a intervenção militar e a volta à ditadura.
“A gente não pode invisibilizar o fato de que em 2018 vamos estar lidando o tempo inteiro com intervenção militar no Rio de Janeiro e proposta para outros estados”, defendeu.
Davi Malveira, do Gajop (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares), que também participou da roda de conversa, ressaltou a importância de popularizar o debate que sempre foi restrito às pessoas que trabalham com a temática e às que sofrem com a situação.
Ele citou as mulheres, negros e jovens com as pessoas mais propensas ao encarceramento; falou sobre a prisão preventiva hoje ser utilizada como punição e sobre a questão das drogas ser um elemento estruturador do encarceramento.
“A gente tem processos de drogas conduzidos única e exclusivamente pelo discurso policial e que acabam potencializando ainda mais esse processo de encarceramento, muitas vezes expondo principalmente as mulheres”, disse.
Para Davi, é preciso lidar com essa realidade também no campo socioeducativo, onde ocorre o encarceramento em massa, relatos de torturas, maus tratos e deficiências estruturais que são muito semelhantes ao ambiente prisional.
Uma realidade que Miriam, e tantas outras mães, conhecem tão bem. Ela perdeu três filhos para a violência, mas encontra na luta por uma sociedade melhor a razão para continuar.
“Basta. Queremos igualdade social. Basta desses genocídios em série. Basta de encarceramento em massa. Um desabafo: só queremos ser mães. Temos o direito à vida, o direito de ser mães e o direito de ter nossos filhos vivos”, ela disse ao finalizar sua participação no debate.
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