Em 6 de outubro, um leilão na Bolsa de Valores de São Paulo (B3) marcou a concessão dos serviços de construção, manutenção e gestão da unidade penitenciária de Erechim, no Rio Grande do Sul, para a empresa Soluções Serviços Terceirizados, a única a participar na disputa. Esse novo modelo de Parceria Público-Privada (PPP) no sistema prisional, inédito até então no País, lança luz sobre a crescente tendência do Estado em se ausentar da responsabilidade sobre a população carcerária.
Mas afinal, privatizar resolve os imensos problemas do sistema prisional brasileiro?
Lucro a Custo da População Carcerária
Um ponto importante a considerar aqui é o potencial de lucro para a empresa que gerencia a prisão. Com 1.200 vagas na futura prisão de Erechim e um recebimento de R$ 233,00 por pessoa presa por dia, a empresa pode lucrar à medida que cresce o número de pessoas encarceradas. Isso levanta preocupações sobre incentivos para manter as prisões cheias, já que o lucro está diretamente ligado ao número de pessoas detidas.
É preciso mencionar que, em média, uma pessoa presa “custa” entre R$ 1.300,00 e R$ 1.700,00 por mês, dependendo do estado, em uma prisão pública, mas especialistas também apontam que, apesar do gasto financeiro, empresas ainda conseguem obter lucro a partir da redução de custos com despesas para necessidades básicas das pessoas presas onde o Estado não reduziria, como, por exemplo, o tempo gasto para tomar banho ou a quantidade de água disponível.
Os consórcios também podem gerar lucro ao empregar uma pessoa detida, uma vez que essas só podem trabalhar dentro da própria penitenciária em atividades como manutenção elétrica e de limpeza.
Isso porque as condições de trabalho de quem está encarcerado não são reguladas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas sim pela Lei de Execução Penal (LEP) de 1984. A diferença é que, enquanto a Constituição Federal de 1988 estabelece que nenhum trabalhador pode receber menos de um salário mínimo, a LEP permite que aqueles que estão presos ganhem apenas ¾ de um salário mínimo, sem benefícios. Isso significa que quem está detido pode custar até 54% menos do que um trabalhador não encarcerado com um emprego formal.
A partir de um ambiente que utiliza a mão de obra cativa para manter sua estrutura, somado com a redução de despesas nas unidades para necessidades básicas, as empresas encontraram uma forma de gerar lucro a partir daqueles encarcerados.
O Estado e o problema carcerário
A terceirização dos serviços prisionais é um tema que gera inúmeras preocupações. Ao se afastar dos cuidados daqueles que estão sob sua custódia, o governo não está apenas evitando enfrentar os problemas do sistema prisional, mas também contribuindo para intensificar o já alarmante encarceramento em massa, que tem como alvos principais as pessoas negras e pobres. Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, mais de 68% da população carcerária era composta por pessoas negras.
O problema da superlotação
Além das inúmeras questões éticas, o sistema prisional brasileiro enfrenta um problema crítico de superlotação. Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o número de pessoas encarceradas cresceu, 257% entre 2000 e 2022, atingindo um recorde de 832.295 pessoas, a maioria negras (68,2%) e jovens, com idades entre 18 a 29 anos (43%). O número é altíssimo e as prisões não têm capacidade para acomodar essa quantidade de pessoas – atualmente, há aproximadamente 236 mil pessoas presas a mais do que o total de vagas no sistema, representando 28% do total.
É preciso destacar, ainda, que muitas pessoas que estão presas não precisariam estar, seja, por ainda estarem aguardando julgamento ou por que cometeram pequenos delitos que poderiam ser reparados de outras maneiras que não a prisão.
Além de ser um sistema violador de direitos humanos, a prisão é também inviável do ponto de vista do custo. José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça entre 2011 e 2016, é um dos especialistas no assunto que afirma que construir penitenciárias para solucionar o problema do déficit de vagas é inviável, uma vez que o déficit cresce em uma velocidade maior do que a quantidade de vagas que podem ser entregues, se tornando uma tarefa de enxugar gelo. Ainda de acordo com Cardozo, a construção de presídios ainda esbarra em obstáculos como a recusa dos estados em receberem uma prisão, por fins políticos e eleitorais, e também por questões financeiras, uma vez que esses espaços são extremamente custosos: a manutenção anual de uma cadeia custa o valor de sua construção. Diante dessas informações, fica claro que o problema não está na falta de espaço, mas sim no uso abusivo da prisão e na resistência da sociedade a buscar resolver os problemas por meios alternativos que já existem.
A necessidade de mudança
Os dados evidenciam que o sistema prisional brasileiro não apenas falha em sua missão de reabilitar e reinserir na sociedade as pessoas que cometeram crimes, mas também têm exacerbado o problema do encarceramento em massa, afetando particularmente a população negra e jovem. A insistência em soluções simplistas, como a construção de mais prisões, ignora a realidade: o Brasil precisa de uma reformulação completa do sistema penal, baseada em princípios de justiça, igualdade e respeito pelos direitos humanos. Em vez de tapar o sol com a peneira, é hora de enfrentar a verdade e buscar soluções eficazes para o problema do encarceramento em massa. O sistema de justiça criminal já conta com ferramentas para lidar com a questão de outras formas, mas tem ignorado sistematicamente tanto o debate como a necessidade de transformações.
Uma chamada à ação
É urgente repensar todo o sistema penal no Brasil. E para serem efetuadas mudanças reais, é necessário um envolvimento ativo da sociedade civil, além do Estado. Quanto mais pessoas encarceradas, maiores os números de violência, maior se torna o crime organizado e menos dinheiro é destinado para educação, saúde e segurança pública de verdade. Com prisões superlotadas, o sistema continuará sendo incapaz da efetiva reabilitação que permita a reinserção social das pessoas encarceradas. Desse modo, é preciso questionar se o futuro que queremos é um que seja seguro ou inseguro.
Diversos coletivos formados por pessoas egressas do cárcere e por suas famílias têm atuado denunciando violações ocorridas nas prisões e lutando pelo fim da tortura. Esses também têm sugerido propostas para tornar o sistema de justiça criminal brasileiro todo mais eficiente e respeitador dos direitos fundamentais. Muitos desses grupos contam com o apoio de fundações, como o Fundo Brasil de Direitos Humanos, para realizar fiscalizações, denúncias e campanhas de conscientização. Você pode conhecer alguns desses projetos neste link.
A sociedade precisa se questionar: o sistema prisional atual está funcionando?