Vamos contar aqui três histórias de vida diferentes, mas com um destino em comum.
Diana, 21 anos, é negra, estudou até o sétimo ano, tem dois filhos, foi estuprada na adolescência pelo próprio pai, abandonada pelo marido quando estava grávida do segundo filho, adora dançar e ver o pôr do sol na ponte metálica de Fortaleza, no Ceará.
Caio, 29 anos, foi registrado como Roberta quando nasceu. É um homem transexual que estudou até o sexto ano, trabalhou como entregador de gás e de água no bairro Messejana, em Fortaleza, já lutou karatê e sonha ser professor de educação física.
Marcilene, 42 anos, é casada, tem duas filhas e um filho, é de Iguatu, cidade localizada no interior do Ceará, foi usuária de crack, é ótima costureira, gosta de dançar forró, ir para as festas da padroeira de sua cidade, anda deprimida nos últimos tempos.
O destino em comum dessas três pessoas: elas e ele estão presas no IPF – Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa, na região metropolitana de Fortaleza. Fazem parte da população carcerária que superlota o presídio.
Diana, Caio e Marcilene são os personagens principais da cartilha “Rompendo muros, brotando resistências e liberdades”, publicação criada e divulgada pelo Inegra – Instituto Negra do Ceará. A cartilha faz parte do projeto “Pelas Asas de Maat: ampliando o acesso à Justiça das mulheres em situação de privação de liberdade no Ceará”, apoiado pelo Fundo Brasil por meio do edital anual 2015.
A proposta do Inegra foi conhecer o perfil e a realidade das mulheres em situação de privação de liberdade que cumprem pena no IPF, observando o cumprimento dos direitos humanos. O projeto contribuiu para a formação política das mulheres em relação às temáticas de gênero, étnicas, racial, violência institucional e de direitos humanos. Também deu visibilidade e promoveu debates com as mulheres em privação de liberdade, a sociedade civil e o poder público.
A cartilha fala sobre o encontro de mulheres que estão presas com outras que escolheram se aproximar dessa realidade para conhecê-la melhor e lutar pelos direitos de quem foi encarcerada.
O processo de formação política proporcionado pelo projeto contou com a participação de 90 mulheres que construíram um espaço para trocar experiências, apresentar denúncias, celebrar, rir e chorar.
“Nossos encontros foram cheios de desafios, mas, também, cheios de possibilidades e de transformações da realidade do sistema prisional que afeta mulheres e homens”, dizem as integrantes do Inegra.
“Ganhei bolsa, caderno e a blusa do projeto. A gente pegava livro para ler, conhecia a história das mulheres guerreiras que nem a gente, merendava, cantava e dançava. Por algumas horas, esquecia que estou presa…”, conta Diana sobre o processo de formação.
Para o Inegra, é importante ressaltar que ao ser presa a mulher perde o direito de ir e vir, mas todos os outros direitos continuam valendo.
No cárcere, a vida não é fácil, mas algumas iniciativas proporcionam boa saúde mental e crescimento pessoal: ter a oportunidade de ficar perto dos filhos; receber visitas de familiares; participar de atividades educativas e trabalhar; ter apoio emocional; ter acesso à assistência jurídica; participar de momentos festivos; ter participação política; contar com a solidariedade; receber ou ver a colega de cárcere conseguir o alvará de soltura, mesmo que seja para cumprir pena alternativa.
Perfil e estrutura
De acordo com a cartilha, a maioria das presas no IPF é formada por mulheres negras, jovens e pobres. O primeiro Censo Penitenciário do Ceará, realizado em 2014, mostrou que as mulheres são 4,8% da população carcerária no estado e que 52,3% delas têm até 29 anos. Mais de 60% estavam presas por causa do envolvimento com o tráfico de drogas; 29,3% devido a crimes contra o patrimônio e 10,6% por crimes contra a pessoa.
Em geral, as mulheres presas recebem menos visitas que os homens. Apenas 12,7% são visitadas por maridos ou companheiros e 31% recebem as visitas das mães.
Outros estudos revelam que dois terços das mulheres encarceradas no país são negras.
Segundo o Inegra, a maioria têm a vida marcada pela violência e pela violação dos seus direitos antes, durante e após o aprisionamento.
Muitas foram abandonadas pelos pais, vítimas de trabalho infantil, sofreram violência sexual, engravidaram na adolescência, abandonaram a escola e viveram em situação de dependência financeira e afetiva.
Algumas mulheres sofreram várias abordagens policiais violentas antes de serem presas. Na hora da prisão, foram vítimas de violência moral, física, patrimonial e psicológica.
“Talvez a polícia tenha batido em mim três vezes por causa da minha aparência. Quando fui preso em flagrante, apanhei muito da população e de sete policiais. Fiquei muito machucado. Disseram que se eu queria ser homem, ia apanhar como um homem”, relata Caio.
Falta de assistência na área de saúde, alimentação de má qualidade e atendimento psicossocial e jurídico limitado também fazem parte da realidade carcerária.
As mulheres presas enfrentam ainda a violência institucional, como a que vitimou Marcilene.
“Um dia eu estava dormindo na minha cela e acordei com uma zoada enorme. Várias agentes do Grupo de Apoio Penitenciário derrubaram nossas coisas no chão, lançaram spray de pimenta que queimou meu rosto, cortaram o meu colchão e derramaram meu xampu”, ela conta.
As agentes encontraram um chip de celular sem identificação e todas as mulheres da ala foram castigadas com a suspensão do banho de sol durante três dias.
A cartilha conta também com um dicionário de palavras usadas no presídio e com uma lista de instituições, com endereços e telefones, a quem recorrer no caso de ter o direito violado.
Inegra
O Inegra voltou a ser apoiado pelo Fundo Brasil em 2016 por meio do projeto “Mulheres Negras: quebrando os laços das novas correntes”, que tem o objetivo de oferecer às mulheres negras encarceradas no Ceará o rápido acesso à Justiça na perspectiva de contribuir para a garantia dos direitos e a redução do número de presas provisórias.