Na década de 1970, na aula inaugural do curso de cultura negra da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, a então jovem Zezé Motta ouviu palavras que ajudariam a moldar a sua atuação pessoal e profissional na luta por equidade racial. A professora, ninguém menos que a intelectual e ativista Lélia Gonzales, referência dos movimentos negros e do pensamento contemporâneo brasileiro como um todo, disse à turma, formada principalmente por alunas e alunos negros, que sabia por qual motivo estavam ali.
“Mas eu gostaria de lembrar a vocês que não temos mais tempo para lamúrias. Temos de arregaçar as mangas e virar esse jogo”, disse Lélia à classe.
O relato foi feito pela atriz Zezé Motta na segunda edição da série Juntas e Juntos #AoVivoComFundoBrasil. Dessa vez com o tema Enfrentamento ao Racismo, o evento reuniu, além de Zezé, o historiador e ativista Douglas Belchior e a advogada e superintendente adjunta do Fundo Brasil de Direitos Humanos Allyne Andrade, em conversa facilitada e comentada pela jornalista Flávia Oliveira.
A série Juntas e Juntos #AoVivoComFundoBrasil promove encontros virtuais com a proposta de juntar opiniões e conhecimentos diversos em conversas leves, divertidas e informativas. Coloca na mesma roda artistas, ativistas e comunicadores que se destacam em seu campo de atuação e também na defesa de direitos para todas e todos os brasileiros.
A programação continua com nos dias 2 de setembro, com o tema Pelos Direitos dos Povos Indígenas, e 16 de setembro, Pelos Direitos das Mulheres. Clique para saber mais sobre a série.
Construir identidade
A jornalista Flávia Oliveira abriu o evento com uma entrevista exclusiva com Zezé Motta sobre sua trajetória como artista e ativista. Sensível e contundente, a atriz e cantora emocionou a audiência em muitos momentos. Lembrou que, como muitas mulheres negras, passou por uma fase de tentativa de embranquecimento, buscando uma estética padronizada que não corresponde ao seu tipo físico.
Foi considerada “feia, porém exuberante” ao ser selecionada para o papel de Xica da Silva, em 1976. Ouviu que não precisava estudar teatro para interpretar papéis de empregadas domésticas. “Não há nada de errado no papel de empregada doméstica. O problema é que elas nunca tinham história, família, casa, contexto”, ponderou. Escutou que era “exótica” durante a produção de uma peça de teatro. Neste dia, ao chegar em casa, Zezé – este foi o dia em que, de volta ao seu quarto de hotel, ela colocou os cabelos alisados com ferro de passar no chuveiro, recuperou a textura crespa e decidiu que nunca mais faria alisamentos, nem procedimentos estéticos para se adequar ao padrão branco de beleza.
Para inspirar orgulho e pertencimento nas crianças negras, Zezé Motta considera importante apresentar a elas referências positivas, como heroínas e heróis negros. “O noticiário só nos mostra pessoas negras como criminosas. No máximo, como jogadores de futebol. Precisamos mostrar os feitos notáveis de negras e negros para que crianças pensem em outros futuros.”
Reconhecimento a quem veio antes
Flávia Oliveira deu sequência ao evento chamando também Allyne Andrade e Douglas Belchior. As quatro pessoas negras que compuseram a mesa foram unânimes em reconhecer o papel fundamental de negras e negros que, antes delas e dele, lutaram por equidade racial.
A autora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) foi lembrada como referência por sua condição de escritora autodidata e que conquistou notoriedade incomum para uma mulher negra de sua época. Para Zezé Motta, a escritora fortalece mulheres negras que vivem na pobreza, como a própria Carolina viveu, para acreditarem no seu próprio valor.
Douglas Belchior, cofundador da rede de educação popular Uneafro e da Coalizão Negra Por Direitos, e coordenador de Articulação do Fundo Brasil, contou que seu ativismo é herança dos pais. “Sou do momento em que o Brasil começou a experimentar as políticas públicas. Essas políticas que abriram as portas da universidade para a juventude negra foram um divisor de águas, de potencialidades, de construção de lideranças, de intelectuais de diversas áreas. Isso é resultado direto das lutas do movimento negro”, afirmou.
Mudar o poder
“A cabeça pensa onde os pés pisam. Onde pisam os pés das mulheres negras? No chão mais sofrido desse país”, refletiu Douglas Belchior, ao destacar a importância de se buscar diversidade na representação política no país.
Essa luta por representação diversa nos espaços de poder, afirmou Douglas, deve ser também uma luta das pessoas brancas. Ele analisou que, se existe uma tentativa de ainda se manter as pessoas negras em uma posição de escravizadas, há também o esforço de manter brancos na posição de escravizadores. Uma dinâmica que não é benéfica para nenhuma das partes. “As pessoas brancas querem mesmo ser agentes dessa desumanização?”, questionou.
No primeiro debate da série Juntas e Juntos #AoVivoComFundoBrasil, que teve como tema Pelos Direitos Humanos, a socióloga Edna Jatobá já havia lembrado que só é possível lutar pelos direitos humanos sendo antirracista.
>> Clique para assistir ao bate-papo Juntas e Juntos Pelos Direitos Humanos
Medidas antirracistas
Com a provocação feita por perguntas enviadas pelas atrizes Juliana Alves e Thainá Duarte, as e o integrante da mesa sugeriram atitudes práticas para ser antirracista.
Foram lembrados episódios de racismo recentes como o do homem, réu primário, condenado a 14 anos de prisão em sentença na qual uma juiza branca escreveu que ele era “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão de sua raça; e o da menina de 10 anos violentada por um familiar e agredida pela multidão do lado de fora da unidade de saúde onde foi realizar o procedimento legal de aborto.
“É exaustivo”, disse Zezé Motta. “Quando eu era mais jovem, eu achava que, se lutasse, meus filhos, meus netos não teriam de passar por isso. Agora estou aqui, aos 76 anos, tenho seis netos, e é preciso continuar lutando.”
Allyne Andrade, do Fundo Brasil, destacou que o racismo não está apenas na agressão. No país, é tão estruturante da sociedade que, para romper essa estrutura, é preciso questionar tudo. “Ausência de políticas públicas para a parcela mais vulnerável da população é racismo estrutural”, disse Allyne.
Contra esse racismo que reduz as possibilidades de futuro da maioria das e dos brasileiros, a superintendente adjunta do Fundo Brasil lembrou que a sociedade civil se organiza. Pressiona por direitos em todo o país e constrói saídas. Apoiar esses grupos de base é o trabalho do Fundo Brasil, disse Allyne. “Todas e todos que neste momento podem, têm condições, podem fazer doações para ajudar o Fundo Brasil a dar continuidade a esse trabalho.”
A conversa terminou em clima de encatamento, com Zezé Motta cantando, à capela, a canção Senhora Liberdade, de Nei Lopes.