Maria da Penha Fernandes, que deu nome à lei que pune a agressão a mulheres no Brasil, após sete anos de espera, receberá R$ 60 mil do governo do Ceará. Em 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA determinou que o estado a indenizasse por não ter punido judicialmente seu ex-marido, que a agrediu e tentou matá-la mais de uma vez. Independentemente do valor, Maria da Penha sabe que a indenização “tem uma dimensão internacional contra a impunidade”.
A decisão é relevante por garantir, finalmente, uma resposta estatal ao caso e por seu poder simbólico, capaz de servir de estímulo para que mulheres e outros segmentos sociais vulneráveis busquem garantir os seus direitos. Porém, seria desejável que, acima de tudo, a decisão demonstrasse o amadurecimento do Estado Brasileiro em favor do respeito absoluto aos direitos humanos de todos os seus cidadãos. O momento é importante e clama por isso.
Em 2008, a Declaração Universal dos Direitos Humanos celebra 60 anos. Adotada pela ONU em 1948, constitui documento fundamental por instituir um patamar de direitos e deveres a serem respeitados por todos. Entretanto, apesar de todos os cidadãos serem titulares desses direitos, verifica-se que a simples condição humana, do ponto de vista biológico, não tem sido suficiente para garantir o acesso a tais direitos. Direitos são conquistados e essa conquista tem percorrido um caminho cheio de avanços e retrocessos. Ainda hoje, no Brasil, certas pessoas são vistas como “mais humanas” ou ”mais cidadãs” do que outras. Critérios como sexo, raça, orientação sexual e pobreza têm concorrido para a configuração de um contingente de cidadãos de segunda categoria.
A arquitetura dos direitos humanos foi profundamente modificada no século XX. Uma série de tratados e planos de ação das Nações Unidas ampliaram suas fronteiras, antes centradas nos direitos civis, políticos e sociais, passando a reconhecer novos sujeitos de direitos – mulheres, crianças, povos indígenas – e a incluir dimensões como o racismo, a saúde, os direitos reprodutivos, o meio ambiente, a violência doméstica. Os movimentos sociais foram atores essenciais nesse processo, refletindo a dinâmica do poder em nível nacional e internacional. As mulheres, que ao longo dos séculos foram privadas do exercício pleno de direitos e submetidas a abusos e violências, tanto em situações de guerra quanto no espaço da vida familiar, tiveram um papel de grande relevância na ampliação do alcance dos direitos humanos.
Mas, fazer valer essas conquistas é ainda um grande desafio. A universalização dos direitos humanos requer um consenso internacional cujos limites e possibilidades dependem de questões relacionadas à soberania nacional, a valores culturais e religiosos, a características do Estado, como laicismo ou religiosidade, autoritarismo ou democracia, e à ação da sociedade civil. É ainda longa a distância que separa, em nossa sociedade, leis e realidade. Como operacionalizar o marco normativo, bastante avançado, já existente em nosso país? Como tornar a cidadania uma prática cotidiana? Nesse cenário, a boa notícia é que a sociedade civil se organiza cada vez mais para denunciar e responder aos abusos e violações dos direitos humanos. Iniciativas criativas surgem por todo o Brasil, a partir de organizações pouco conhecidas, mas com imenso potencial de impacto dado o compromisso e a proximidade com os grupos cujos direitos são violados. Exemplos como a Associação de Mães e Amigos de Crianças e Adolescentes em Risco (AMAR), que trabalha no controle social e combate à violência institucional dentro da Fundação CASA (antiga FEBEM), em São Paulo; o Coletivo de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Estado do Maranhão, que defende os direitos das quebradeiras de coco de babaçu naquele estado; ou ainda o Grupo de Mulheres Cidadania Feminina, que trabalha com mulheres e jovens em situação de violência doméstica e de exploração sexual em Recife (PE), bem como vários outros projetos apoiados pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos dão conta da diversidade e eficiência desse trabalho.
É preciso fortalecer indivíduos e organizações para que esses possam levar adiante as suas lutas, transformando em realidade o respeito aos direitos humanos e abrindo novos caminhos para a justiça social.
Jacqueline Pitanguy é Presidente do Conselho Curador do Fundo Brasil de Direitos Humanos e Ana Valéria Araújo Coordenadora Executiva do Fundo Brasil de Direitos Humanos