Criado em 2017, o coletivo Eu Sou Eu – A Ferrugem foi formado para lutar pela efetivação dos direitos – garantidos em lei – das pessoas que saem do sistema prisional brasileiro. Além disso, para impulsionar a construção de novas possibilidades de vida depois da violenta experiência do cárcere. É uma organização construída pelos próprios egressos e egressas.
O estudante de história Cristiano Silva integra o coletivo. Na quarta-feira, 12 de agosto, ele foi um dos convidados de um debate online que discutiu as violações de direitos a que são submetidas as pessoas encarceradas no Brasil – em um sistema que é racista por excelência – e as perspectivas de defesa de direitos para essas pessoas. O evento Direitos Humanos e Justiça Criminal – Combatendo o Encarceramento em Massa no Brasil, realizado em parceria com o Sesc São Paulo, marcou o lançamento do edital de mesmo nome, do Fundo Brasil.
O edital está recebendo inscrições. O período de submissão de projetos vai até 23 de setembro, às 18 horas (horário de Brasília).
O coletivo Eu Sou Eu – A Ferrugem foi criado a partir de encontros entre egressos, de suas conversas sobre as violências sofridas no cárcere e sobre possibilidade de futuro para quem, mesmo já tendo pagado sua dívida à justiça, parece fadado a viver “uma sentença social eterna”, como disse Cristiano durante o debate. “Com o fim da pena, a porta da prisão se abre para você sair. Mas ela continua sempre aberta, te convidando a voltar”, refletiu. Em 2017, o grupo foi apoiado no Edital Geral do Fundo Brasil.
O debate online sobre direitos das pessoas egressas teve também como convidada a advogada Caroline Bispo, ativista da Associação Elas Existem – Mulheres Encarceradas, apoiada pelo Fundo Brasil no edital Enfrentando o Racismo a Partir da Base. Felipe Freitas, doutorando em direito e um dos criadores do Infovírus – Observatório Covid-19 e Prisões, e a juíza aposentada Kenarik Boujikian, conselheira do Fundo Brasil, completaram a mesa, mediada pelo assessor de Projetos Pedro Lagatta.
O evento foi transmitido pelo Youtube e pelo Facebook do Sesc 24 de Maio.
Violações em série
O Brasil possui hoje a terceira maior população carcerária do mundo: são mais de 800 mil pessoas atrás das grades, segundo o Conselho Nacional de Justiça, apesar de o sistema prisional ter capacidade para abrigar somente metade deste número. A cultura de encarceramento vigente no país hoje banaliza a prisão e se utiliza dela como mecanismo que perpetua o racismo como estrutura da sociedade brasileira.
Quase 40% das pessoas encarceradas estão ainda à espera de um julgamento justo. Cerca de 60% são homens e mulheres negros e negras.
A escolha pela privação de liberdade como regra fere princípios constitucionais e democráticos e tem como consequência a superlotação e condições desumanas no cárcere, atingindo principalmente pessoas negras, pobres, jovens e de baixa renda e escolaridade.
“O sistema prisional brasileiro seleciona presos por sua raça e classe social” afirmou Allyne Andrade, superintendente adjunta do Fundo Brasil, na abertura do debate. “Uma vez selecionadas, essas mesmas raça e classe social vão definir as inúmeras violações que essas pessoas sofrerão dentro do sistema prisional. Estamos falando de situações de tortura, e de condições que ferem as regras estabelecidas pela lei de execuções penais”.
Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que, ante as violações de direitos humanos verificadas em unidades prisionais pelo país, o sistema penitenciário brasileiro existe num “estado de coisa inconstitucional”. A passagem pela prisão, nessas condições, deixa marcas: muitas vezes, vínculos familiares são desfeitos. O estigma que pesa contra os egressos diminui as chances de empregabilidade. E o Estado, em regra, não ampara quem sai da prisão: “São raros os estados que desenvolvem políticas para egressos” lembra Allyne. “Em função disso, a reincidência é grande”.
Os dados sobre reincidência prisional no Brasil são esparsos. Os que existem indicam que algo entre 24,4% (de acordo com pesquisa do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas de 2015) e 30% (segundo dados do antigo Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro) das pessoas que cumprem pena retornam, em algum momento, para a prisão. Para a juíza aposentada Kenarik Boujikian, romper esse ciclo exige desenhar medidas que pensem, já na entrada da pessoa, quais serão as condições em que ela sairá de lá: “Que tipo de orientação a pessoa que deixa aqueles muros recebe? Sobre como regulamentar documentos ou se inserir no mercado de trabalho? Hoje, nenhuma”, afirma.
Para Carolina Bispo, da Elas Existem, o desenho de toda e qualquer política para essa população deve ouvir o que as pessoas egressas e pré-egressas têm a dizer. E levar em conta os reflexos psicológicos da passagem pelo cárcere: “É doloroso pensar que elas vão voltar para uma realidade que não vai abarcá-las” diz Carolina. “Uma realidade em que você nem sequer pode usar uma blusa branca sem se lembrar da prisão. Não pode passar sob uma ponte sem lembrar de uma cela”.
Covid-19 agrava o cenário
Um dos criadores do Infovírus, o pesquisador Felipe Freitas afirma que a pandemia do novo coronavírus torna ainda mais traumática uma situação já precária. Composto por pesquisadores e ativistas de todo o país, o Infovírus é um observatório que reúne informações a respeito da propagação do vírus Sars-cov-2 nas penitenciárias brasileiras. A iniciativa pretende contrapor as informações disponibilizadas pelo governo federal — que minimiza o alcance da pandemia.
Freitas lembra que, no final de abril, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma recomendação segundo a qual o judiciário deveria tomar medidas para diminuir o fluxo de presos no sistema prisional. Pessoas presas integrantes de grupos de risco, mais vulneráveis à Covid-19, poderiam cumprir pena em regime domiciliar. Recomendou-se, também, a reavaliação de casos de prisão provisória.
Dados recentes, levantados pelo site jurídico Jota, dão conta de que, na maioria dos casos, a recomendação foi ignorada — cerca de 81% dos pedidos de habeas corpus motivados pela pandemia feitos ao STF foram indeferidos. No Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior do país, foram negados 88% deles, segundo pesquisa do Insper.
“É absurda a violência do sistema de justiça do poder judiciário e do Ministério Público na vedação das medidas necessárias para conter a propagação da pandemia”, disse Felipe Freitas. Na avaliação dele, a pandemia agrava e evidencia um quadro de violência pré-existente. “E faz isso num nível letal”, pondera.
Entre epidemiologistas, conta Freitas, existe o temor de que as penitenciárias brasileiras se transformem em bolsões de reinfecção, onde o vírus se propagará sem controle. Para ele, os reflexos psicológicos e físicos dessa situação serão sentidos ainda pelas próximas décadas. As políticas para egressos pensadas nos próximos anos deverão contemplar os reflexos da pandemia: “A prisão gera trauma. Imagine esses efeitos psicológicos potencializados pelo terror de ser contaminado”, alerta o pesquisador. “A política de egressos, pelos próximos 20 anos, vai ser afetada por esse contexto”.
Saiba mais sobre o edital
Por meio do edital “Direitos Humanos e Justiça Criminal – Combatendo o encarceramento em massa no Brasil”, o Fundo Brasil apoiará dois tipos de iniciativas: o Eixo 01 é focado em combater o uso excessivo de prisões provisórias no país; o Eixo 02 apoiará projetos de promoção dos direitos das pessoas egressas do sistema prisional.
O período de inscrição de propostas vai até 23 de setembro, às 18 horas (horário de Brasília). São aceitas também inscrições de organizações, grupos e coletivos ainda não formalizados. No Eixo 1, de combate ao uso excessivo de prisões provisórias, serão doados até R$ 150 mil, para até 10 propostas, com apoio da Oak Foundation. No Eixo 2, de promoção de direitos de pessoas egressas do sistema prisional, os apoios são de até R$ 100 mil, para até 4 projetos.
O Fundo Brasil priorizará propostas que considerem a dimensão racial, étnica e de gênero que determinam a seletividade penal e as múltiplas violações no contexto do sistema de justiça criminal. Também terão destaque os projetos com forte componente de trabalho em rede, conectados a iniciativas já desenvolvidas, e que busquem engajar e influenciar os poderes públicos. O Fundo Brasil estimula a apresentação de propostas protagonizadas por pessoas diretamente afetadas pelo encarceramento em massa.
Também incentiva o envio de propostas que contribuam para maior transparência dos impactos da pandemia na população carcerária, seus familiares e sobreviventes do sistema, bem como ofereçam subsídios para seu enfrentamento.
As inscrições, realizadas exclusivamente online. Confira aqui o edital completo.
>>Veja a cobertura do primeiro dia de debates, sobre o uso abusivo de prisões provisórias