Todos os anos, a professora Joyce Rodrigues repete um mesmo exercício com seus alunos do curso de estudos sócio-políticos: à altura em que a turma discute a independência do Brasil, Joyce pede que eles — que são adolescentes — escrevam uma carta para o país recém-criado. “Há uma boa dose de ingenuidade e de bons desejos para o futuro”, conta ela. “E há também a impressão de que, com a independência, algumas conquistas estariam automaticamente consolidadas. Como se não houvesse mais conflitos instalados”, diz ela. Naquele Brasil de 200 anos atrás, lembra ela, havia grupos disputando qual futuro seria construído dali para a frente.
Joyce trouxe a experiência à tona durante a abertura do Encontro de Projetos do Fundo Brasil. Durante três dias, 66 organizações de defesa dos direitos humanos do norte e nordeste do país se reuniram em Salvador, à convite da Fundação, para debater os caminhos que a democracia brasileira pode trilhar. E para refletir sobre o papel da sociedade civil organizada nas disputas pela construção desse futuro. “Hoje, há também disputas a travar. Nos últimos anos, instituições democráticas e instrumentos de participação popular foram dilapidados”, destacou a professora. “Para pensar nos problemas atuais, é preciso pensar nos problemas crônicos do país”.
O encontro de projetos é um evento já tradicional do Fundo Brasil. Anualmente, a instituição convida grupos que foram selecionados em edital, e que têm apoios ativos, para se reunir, trocar experiências e impressões. Em 2022, depois de dois anos em formato virtual, o encontro foi dividido em duas etapas. A primeira reuniu organizações das regiões sul, sudeste e centro-oeste em São Paulo no final de agosto. A segunda aconteceu entre 14 e 16 de setembro na capital baiana. “Esses momentos de encontro têm fundamental importância para o Fundo Brasil” destacou Allyne Andrade e Silva, superintendente-adjunta do Fundo Brasil durante o evento em Salvador. “Somos uma instituição que baseia suas ações nas escutas que faz junto do campo. Ouvindo as organizações que atuam, cotidianamente, na defesa dos direitos humanos”.
Participaram do encontro os grupos apoiados nos editais 2021- Seguir com Direitos; Direitos humanos e justiça criminal; Enfrentando o racismo a partir da base 2021; LGBTQIA+ defendendo direitos; Defensoras/es de direitos humanos: fortalecendo capacidades para proteção e segurança integral; Em defesa dos direitos dos povos indígenas; Mobilização em Defesa dos Espaços Cívicos e da Democracia; e no Apoio emergencial SOS Amazônia.
Os debates foram mediados por Joyce e pela também professora Cláudia Balthazar. Ficou a cargo delas dar o pontapé inicial nas discussões sobre o atual momento da democracia brasileira. Para os presentes, trata-se de uma democracia falha, que carece de ampliação. “Precisamos construir uma república que seja democrática para todas e todos. Uma república como Palmares”, disse Augusto de Carvalho Souza, da Associação Metropolitana de Estudantes Secundaristas de Salvador (Ames Salvador). “Temos o dever de organizar nosso povo para construir uma nova sociedade”.
Muitas formas de defender a democracia
Além de debates, o Encontro de Projetos propicia momentos de articulação entre organizações que atuam em pautas diversas: da luta pela terra travada por mulheres camponesas, à luta contra o racismo empreendida por povos de terreiro. Grupos que, de diferentes maneiras, trabalham para ampliar conquistas democráticas.
Caso da revista Afirmativa, um coletivo de mídia negra soteropolitano que faz do jornalismo um instrumento para conquistar direitos. “Travamos a luta antirracista por meio da comunicação”, explica o editor Jonas Pinheiro. “Estamos aquém em nível de democracia no Brasil porque falta pluralidade em espaços de poder. É preciso qualificar o debate , e fazer comunicação a partir da perspectiva dos povos que foram marginalizados”, defende. A revista Afirmativa foi apoiada pelo Fundo Brasil no âmbito do edital Enfrentando o Racismo a Partir da Base, que contemplou 21 grupos com apoios institucionais — do tipo que não precisa estar vinculado a um projeto específico, e cujos recursos podem ser utilizados para fortalecer a organização. “Fazer comunicação é custoso, e ter apoios como o do Fundo Brasil é fundamental para garantir a existência da revista”, afirma.
Foi esse, também, o caso do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negros e Negras (Fonatrans). Desde 2014, o grupo alia discussões sobre identidade de gênero à questão racial. E pressiona o poder público para que desenvolva políticas capazes de garantir dignidade à população trans negra. “As política públicas que temos hoje ainda tomam como referências corpos brancos e cisgênero. Nós precisamos avançar, visibilizar outras vivências”, diz Jéssika Rodrigues, ativista da organização. “Apoios como o do Fundo nos permitem alcançar novos espaços”.
No Vale do Javari, Amazonas, a luta pela democracia se confunde à defesa dos territórios indígenas. Ameaçada pelo avanço de madeireiros, pescadores ilegais e garimpeiros, a Terra Indígena Vale do Javari experimenta uma escalada da violência. Para se opor a esse cenário, a União dos Povos Indígenas do Javari (Univaja) articula ações de monitoramento e denúncia. “A Univaja cumpre um papel que deveria ser do Estado. Nós protegemos o território indígena do Vale do Javari”, conta Paulo Marubo, coordenador da organização. “Por defender esse território, recebemos ameaças de morte. Precisamos de apoio para proteger quem protege a floresta”.
Para os presentes, o encontro permitiu também um momento de respiro num cotidiano atribulado. Um momento para recobrar o fôlego. “Os desafios são muitos e o medo tenta nos fragilizar”, disse Cláudia Balthazar. “Mas o que nos fortalece é saber que nosso povo continua aqui, conosco”.