O movimento negro no Brasil vive, hoje, um momento único na história. A avaliação é do historiador Douglas Belchior, coordenador de Articulação do Fundo Brasil de Direitos Humanos.
“Os debates sobre combate ao racismo alcançaram um destaque inédito na arena pública”, disse ele na quinta-feira, 20 de agosto, durante debate online que reuniu ativistas e a equipe do Fundo Brasil. O evento marcou o lançamento oficial do edital Enfrentando o Racismo a Partir da Base – Fortalecimento Institucional e Mobilização Para Defesa de Direitos.
O período de envio de propostas para o edital está aberto. Vai até o dia 21 de setembro, às 18 horas (horário de Brasília). O resultado do processo de seleção será informado por meio do site do Fundo Brasil a partir de 20 de novembro de 2020.
Serão aceitas propostas de grupos, coletivos e organizações de base que tenham o combate ao racismo no centro do seu trabalho. Serão selecionados 20 grupos para receber até R$ 50 mil cada, destinados a ações de fortalecimento institucional. Os recursos são flexíveis, ou seja, podem ser usados da forma como a proponente considerar adequada, com vistas a viabilizar as condições materiais para a continuidade do trabalho de enfrentamento ao racismo que cada grupo já realiza.
O debate online de lançamento, promovido em parceria com o Sesc São Paulo, por meio da unidade Sesc 24 de Maio, teve as participações também da socióloga Vilma Reis, ativista referência para os movimentos negros no Brasil; do coordenador do Coletivo Brincadeira de Negão, projeto apoiado pelo Fundo Brasil em Cachoeira, na Bahia; e de Mayana Nunes, assessora de Projetos do Fundo Brasil responsável pelo edital Enfrentando o Racismo. A superintendente adjunta do Fundo Brasil, Allyne Andrade, mediou a conversa.
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Para Douglas Belchior, o cenário é animador, por um lado, mas convive com desafios e com o temor de retrocessos. Hoje, homens e mulheres negros ainda figuram entre as principais vítimas da violência policial, e são maioria entre os mortos pela pandemia de Covid-19. “As organizações são pujantes. Mas trabalham num contexto político pontuado pelo racismo e pelo conservadorismo”, avalia Belchior.
Para continuar avançando em uma conjuntura de dificuldades acentuadas também pela pandemia de Covid-19, as organizações e coletivos negros surgidos na última década e meia precisam de apoio.
“Pensamos nesse edital como a nossa contribuição para evitar retrocessos na luta antirracista, que está tão articulada no Brasil”, afirmou Allyne Andrade. “Queremos colaborar com a manutenção dessa luta.”
Com um histórico de ativismo de quase três décadas, Vilma Reis lembrou que acompanhou o amadurecimento dessa luta – e foi beneficiária dela. “Nos anos 1990, eu só fui fazer mestrado na Universidade Howard, nos EUA, graças às articulações construídas pela Criola”, afirmou, em referência à ONG do Rio de Janeiro.
Para os debatedores, nos últimos anos, foram justamente as conquistas no campo da educação aquelas que operaram mudanças mais profundas. Em 2018, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), alunos pretos e pardos se tornaram maioria nas instituições públicas de ensino superior.
As políticas de cotas mudaram o cenário das universidades brasileiras. Segundo Vilma, o desafio para o futuro é operar mudanças semelhantes em outros espaços institucionais. “Uma das nossas prioridades é ocupar espaços de poder. Mudar a cara da política nacional” disse ela. “Porque é isso que vai mudar a cara das nossas cidades, vai mudar a maneira como as pessoas vivem.” Essa mudança, argumenta ela, é necessária para o estabelecimento de uma democracia plena no país.
Para Gimerson Roque, o combate ao racismo institucional tem reflexos importantes na vida da juventude negra periférica. “Hoje, o que a gente observa é uma perseguição às manifestações culturais dessa juventude”, afirma. “E a manutenção de um quadro de brutalidade policial”. Roque é um dos fundadores do Coletivo Brincadeira de Negão. Nascido na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, o grupo recorre ao rap para discutir as experiências vivenciadas por jovens negros da região. Nos últimos meses, conta, o grupo percebe um processo de repressão crescente aos chamados “paredões”: festas, realizadas na rua, ao som de rap e funk. “Os debates sobre os paredões nunca são educativos. Quem participa da conversa? Um coronel da PM, alguém do ministério público e um funcionário da prefeitura” conta. Para ele, é importante diversificar as vozes, e vivências, envolvidas nessas discussões.
Fortalecimento da sociedade civil
Mayana Nunes lembrou que o desenho do novo edital partiu de um processo de escuta atenta às organizações do campo, às suas necessidades e prioridades: “Esse é o primeiro edital do Fundo Brasil voltado a fortalecimento institucional. Entendemos que era importante pensar na sustentabilidade e garantias materiais básicas para que as organizações consigam sobreviver e continuar seu trabalho.”
Ao longo de seus quase 15 anos de trabalho, lembrou Mayana, o Fundo Brasil construiu uma trajetória de apoio a organizações de base. O edital Enfrentando o Racismo recebe propostas inclusive de organizações sem CNPJ. “O que queremos é que as organizações falem como atuam pelo combate ao racismo, como funciona o seu trabalho. É preciso enviar um orçamento, que está disponível no próprio formulário de inscrição”. As inscrições são feitas exclusivamente pela internet, por meio de um formulário disponível no site do Fundo Brasil.