O filho de Débora Maria da Silva morreu há dez anos e até hoje a fundadora e coordenadora do movimento Mães de Maio tem a sensação de ver o primogênito cair. A tristeza de reviver a tragédia surge toda vez que ela é informada sobre a morte de jovens pela polícia nas favelas e periferias do país.
“Enterrei meu filho há dez anos. E há dez anos a ficha não caiu”, conta, rodeada de jovens durante uma roda de conversa sobre os Crimes de Maio, como ficou conhecido o episódio em que mais de 500 civis foram assassinados no estado de São Paulo por homens encapuzados após as mortes de policiais provocadas pelo PCC (Primeiro Comando da Capital), entre os dias 12 e 20 de maio de 2006.
Falar, denunciar e cobrar punição são ações que fazem parte da rotina de Débora nesta última década. O dia a dia ficou mais intenso nas últimas semanas por causa dos dez anos dos Crimes de Maio. Entrevistas, rodas de conversa e debates sobre os dias sangrentos têm nesta mãe de 57 anos uma referência de resistência às violações de direitos humanos tão escancaradas na matança realizada em áreas pobres do estado.
Ela não cansa. E não tem medo.
“Enquanto viver, vou lutar”, promete. “A luta é pela desmilitarização da polícia. Prometi isso na tampa do caixão do meu filho”.
O filho de Débora, o gari Edson Rogério Silva, morreu no dia 15 de maio de 2006, aos 29 anos. A coordenadora do Mães de Maio havia sido informada por um familiar sobre os riscos de ficar na rua naqueles dias e pediu para o filho tomar cuidado no caminho para casa, à noite, após o trabalho.
Na manhã seguinte, no entanto, soube pelo rádio que Rogério era uma das vítimas dos assassinatos cometidos por homens encapuzados em Santos, onde a família mora. Horas antes, eles haviam passado juntos o Dia das Mães.
“Enlouqueci. Parecia que o mundo tinha desabado em cima de mim. Não acreditava, mas logo veio a confirmação. Sofri muito, mas muito mesmo. Imagine uma mãe receber a notícia da morte de seu filho pelo rádio. Passei alguns dias sem comer, sem dormir, tentava uma explicação: por que fizeram isso?”, ela conta no livro “Do luto à luta”, lançado em 2011 com apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos.
“O Fundo Brasil é que alavancou o Mães de Maio”, diz Débora. A fundação apoiou o movimento em 2010, 2011 e em 2015, neste último ano de forma emergencial para colaborar com o projeto “10 anos dos crimes de maio de 2006: relembrar para que não siga acontecendo”.
Além do livro “Do luto à luta” e de outras diversas atividades, o apoio teve como um dos resultados o documentário “Missão: Justiça e Paz – um pouco da história das Mães de Maio”, lançado em 2011.
No documentário, Débora usa camiseta estampada com a foto de Rogério e relata, ao lado de outras mães, o descaso institucional com as investigações sobre os crimes.
A entrevista foi gravada em 2007, um ano após as mortes. Em 2016, Débora continua denunciando o descaso e cobrando providências. A diferença é que sua voz conquistou mais espaços.
Há um mês, por exemplo, a fundadora do movimento esteve nos Estados Unidos, com a Anistia Internacional, participando de uma série de encontros com ativistas, debates públicos e reuniões com autoridades sobre o alto índice de homicídios de jovens negros no Brasil.
“Pisei em lugares em que nunca pensei em pisar, por ser uma mulher pobre. Ninguém quer saber dos nossos mortos. Mas temos que estar aqui para gritar”, afirma. “O movimento Mães de Maio é conhecido agora porque somos mulheres ‘zica’, não vamos ficar no conformismo”, completa.
Memória
Como aconteceu pouco antes de Rogério morrer, o Dia das Mães era uma data em que Débora reunia os três filhos e os sete netos em casa. Neste dia, também era comemorado o aniversário dela. Agora, a data é um marco dos crimes e também do surgimento do movimento Mães de Maio.
Após a morte do filho, Débora precisou passar dez dias no hospital de tão debilitada que ficou. Ainda internada, diz ter ouvido um recado do filho: “Mãe, levanta. Seja forte”.
“Levantei mesmo. No dia seguinte recebi alta”, conta.
Uma semana depois, Débora saiu à procura de outras mães de maio e começou a peregrinação por delegacias, Ministério Público, Câmera dos Vereadores, em Santos. Sem respostas, as mães resolveram procurar ajuda em São Paulo, encontraram mais pessoas dispostas a denunciar os crimes e começaram o movimento.
Exigem do Estado o direito à memória, à verdade e à justiça, como já fizeram familiares de vítimas da ditadura militar brasileira. O Mães de Maio é hoje uma organização que participa de mobilizações contra a violência institucional de forma geral e não apenas as relativas aos Crimes de Maio.
“A ditadura não acabou”, repete Débora nas inúmeras vezes em que é convidada a falar sobre o movimento que lidera. “A polícia no Brasil é uma fantástica fábrica de cadáveres”.
Fundo Brasil
O Fundo Brasil trabalha para promover os direitos humanos e sensibilizar a sociedade para que apoie iniciativas capazes de gerar novos caminhos e mudanças significativas para o país.
A fundação disponibiliza recursos para o apoio institucional e para atividades de organizações da sociedade civil e de defensores de direitos humanos em todo o território nacional.
Em quase dez anos de atuação, já destinou R$ 11,7 milhões a cerca de 300 projetos em todas as regiões do país.
A garantia do estado de direito e o enfrentamento ao racismo são algumas das temáticas apoiadas pela fundação.
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