A introdução da perspectiva de direitos sexuais e reprodutivos no campo da saúde reprodutiva, no qual se insere a questão do abortamento, e a valorização da mulher como sujeito de direitos plenos, trouxe novos horizontes e desafios para o debate sobre o aborto…
Na Conferencia Mundial de População e Desenvolvimento das Nações Unidas realizada no Cairo em 1994, o Governo Brasileiro, acorde com a nossa constituição, reconheceu que os direitos reprodutivos se ancoram no respeito ao direito básico de decidir livre e responsávelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos . Nesta mesma Conferencia o aborto foi discutido como uma questão de saúde publica , afastando-se a perspectiva criminalizante. Em 1995 o Brasil subscreveu a Declaração de Beijing adotada pela 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher comprometendo-se a considerar a revisão de leis contendo medidas punitivas contra mulheres que tenham feito abortos ilegais.
Tendo nosso Governo assumido claramente , no âmbito das Nações Unidas, posição contrária a penalização das mulheres que, por circunstâncias diversas e sempre difíceis , se submetem a um aborto, parece incongruente o ímpeto punitivo de que foram acometidas autoridades de Campo Grande onde, a partir de denuncias de um promotor estadual acolhidas por um juiz, 10 mil mulheres que freqüentaram determinada clinica de planejamento familiar respondem a inquérito policial por suspeita de pratica de aborto. Diante deste fato inusitado e único na história do Brasil e talvez só comparável à impiedosa perseguição às mulheres que praticassem o aborto , instaurada pelo ditador Ceausescu, da Romênia , cabem algumas reflexões.
A primeira diz respeito a relação entre lei e ética. Temos no Brasil uma legislação bastante severa com relação ao abortamento, que só não é criminalizado em duas circunstâncias : quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e no caso de gravidez resultante de estupro. Algumas vezes a ética e a lei coincidem e outras vezes se contradizem. O exercício de uma ação legal não é necessariamente ético. Assim, uma política de estado não pode ser eticamente justificada apenas pela sua legalidade. Se no sentido estrito da lei o aborto é um crime, cabe perguntar se é ético prender uma mulher porque ela, em um momento de sua vida, cometeu um aborto. Pesquisa recente revela que cerca de 75% das mulheres que abortam são casadas, já são mães, trabalham fora e tomam esta difícil decisão em acordo com o parceiro. A segunda reflexão se refere ao direito á saúde Estima-se que no Brasil são realizados em torno de 1 milhão.500 mil abortamentos por ano, uma das principais causas da morbi mortalidade materna porque , sendo clandestinos, são, em sua maioria, realizados em condições inseguras.
O reconhecimento do direito das mulheres realizarem escolhas em sua vida reprodutiva assim como do fato de que quando realizado em condições inseguras,o aborto constitui grave problema de saúde pública, alçou o debate sobre a interrupção voluntária da gravidez a um novo patamar ético cujo desenrolar esperamos, poderá trazer mudanças na legislação brasileira ampliando as circunstâncias em que este será uma pratica legal , incidindo na política de saúde relativa a interrupção voluntária da gravidez , que realizada em uma sociedade secular e plural como a nossa , seja guiada pelos princípios éticos de respeito pelas pessoas e da beneficência.
*Jacqueline Pitanguy é diretora da Cepia, Presidente do Conselho Curador do Fundo Brasil de Direitos Humanos e membro da Comissão de Cidadania e Reprodução.