Em 2020, 175 pessoas trans foram assassinadas no Brasil. Os dados são da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) que, desde 2008, realiza o monitoramento dos casos. O crescimento do número de crimes nesses 12 anos de acompanhamento da Antra é de 201%. No ano passado, todos os registros de assassinatos foram contra travestis e mulheres trans, não tendo sido encontradas evidências sobre o assassinato de homens trans/transmasculinos.
O que é mais alarmante é que os crimes cresceram mesmo durante a pandemia de Covid-19. Nos meses de janeiro e fevereiro (pré-pandemia), 40 casos foram registrados. De março a agosto, período de aplicação de medidas de distanciamento social, como a quarentena, 92 assassinatos foram registrados. Ainda de acordo com o levantamento da Antra, a média de assassinatos de pessoas trans no país é 122,5. Em agosto de 2020, esse número estava em 132 casos.
Neste ano, o Brasil se manteve em primeiro lugar entre as nações que mais assassinam pessoas trans em todo o mundo – pelo 13º ano consecutivo. Segundo o levantamento da Transgeder Europe (TGEU), o Brasil tem 1520 assassinatos de pessoas trans registrados, no segundo lugar está o México, com 528 casos. Em território brasileiro, a transfobia também é potencializada pelo fator raça: travestis e mulheres trans negras, pretas e pardas correspondem a 78% dos casos. Somente em 3% do total de casos não foi possível identificar a raça das vítimas fatais.
Como em outros momentos da história do país, a população trans negra está desassistida durante a pandemia. A dívida histórica para com os corpos de pessoas trans é enorme e, mais uma vez, potencializada pelo racismo estrutural. Ainda que em 2020 existam leis que garantam a proteção mínima dessa população, não se verifica a efetividade das políticas públicas, o que faz com que, pessoas LGBTQIA+ negras lutem pelo direito mais básico: o direito à vida.
Para mudar esse contexto de invisibilidade às violências, como transfeminicídio e extermínio da população negra, que surge o Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros – FONATRANS.
Luta pela vida das pessoas trans. O FONATRANS é um espaço nacional de inclusão e de unificação da militância de travestis e transexuais negras e negros, e visa a articulação com o poder público, com o terceiro setor e a iniciativa privada, com o objetivo de propor a criação políticas públicas específicas e estratégicas e a ampliação das já existentes.
“Ele é reconhecido nacionalmente como parte do Movimento Social Político Organizado LGBTs, e tem como prioridade a promoção da cidadania plena e a luta contra o racismo, preconceito e discriminação sofridos por esta população, motivados exclusivamente por sua identidade de gênero, raça e cor”, explica Jovanna Cardoso da Silva, presidente do FONATRANS.
A articulação para lutar por direitos, por parte do FONATRANS, acontece em contato com todas as regiões do Brasil. Sua organização é composta e dirigida exclusivamente por travestis e transexuais negros e negras e tem atualmente 422 membros. A sede do Fórum está localizada na cidade de Picos, no Piauí, uma das únicas cidades do estado a ter legislação específica de proteção aos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
O FONATRANS é apoiado pelo Fundo Brasil dentro do edital Enfrentando o Racismo a Partir da Base – Fortalecimento Institucional e Mobilização para Defesa de Direitos. Este edital foi lançado para amparar organizações da sociedade civil que atuam no enfrentamento ao racismo na base para o fortalecimento institucional de suas ações.
O Fórum foi uma das selecionadas, o que permitiu ao grupo atender às inúmeras demandas durante a pandemia, explica Jovanna: “O apoio do Fundo Brasil foi primordial para o Fonatrans, porque, inclusive, no mês de outubro, quando a gente achou que pandemia ia dar uma amenizada, a gente conseguiu reunir travestis e transexuais negras de todo o Brasil, com todo o protocolo de segurança, e realizar o 7º Encontro Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros, onde pautamos assuntos importantes, qualificamos lideranças trans e alertamos sobre os cuidados contra a Covid-19. Então, com esse apoio, a gente conseguiu crescer e continuar firme institucionalmente, para que a gente pudesse avançar na nossa política de socialização e qualificação para continuar na causa tão séria, que é combater a transfobia”.
Dentre sua atuação, que se iniciou em 2014, o FONATRANS atuou fortemente ao longo dos anos para o reconhecimento do nome social, por meio de advocacy junto aos governos de estado, ao judiciário, além de campanhas junto à sociedade pelo respeito a essa conquista. Para Jovanna, essa é uma das principais vitórias do movimento nos últimos tempos. “O que nós conseguimos, junto a outros organismos, foi para conquistar a resignação do nome civil e gênero direto mesmo nos cartórios, sem necessidade de ação jurídica e sem processo judicial”, conta.
O que diz a lei. Desde março de 2018, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por unanimidade, que as pessoas transgêneros têm direito a alteração do prenome e do gênero nos registros civis diretamente nos Cartórios de Registro Civil brasileiros, sem necessidade de cirurgia e transgenitalização ou de tratamentos hormonais ou patologizantes e sem a obrigação de decisão judicial. Qualquer pessoa travesti ou transexual acima de 18 anos pode solicitar a alteração, em qualquer cartório de registro civil do território nacional, sem a presença de advogado ou defensor público. Para menores de 18 anos, a mudança será possível somente via judicial. Desde junho de 2018, 3.921 alterações de prenome e gênero já foram realizadas nos cartórios em todo o Brasil.
“Sabemos que a decisão do STF foi fruto de anos de luta do movimento travesti e transexual. Apesar de ser uma grande conquista, a decisão por si só não enfrenta o problema. Por isso, é fundamental que a falta de informação por parte dos cartórios ou negativa de cumprimento da decisão sejam denunciados. De qualquer forma, foi um passo importante na nossa luta”, comemora Jovanna.
Além disso o FONATRANS contribui para o acesso à justiça de travestis e transexuais negras e negros, recebendo denúncias através de seu site, assistindo e orientando as vítimas, encaminhando as denúncias às autoridades e monitoramento seu andamento.
“Nós também conseguimos fazer com que os dados captados por instituições LGBTs no Brasil passassem a inscrever o percentual de negritude, raça, cor nesses relatórios, inclusive porque os relatórios de assassinatos no país, que mais matam pessoas trans no mundo, não nos relatavam. Nós somos 70% da população negra que morremos e não aparecíamos nas estatísticas. Conquistamos os direitos, inclusive de constar na lista de assassinatos”, explica a presidente do FONATRANS.
Enfrentamento à Covid-19. Como demonstra a pesquisa realizada pela Antra, a população de travestis e transexuais negras e negros está mais exposta e em situação agravada nesta pandemia. 70% destas pessoas não conseguiram acesso às políticas emergenciais na pandemia, devido à situação de vulnerabilidade.
Com o aumento da violência contra pessoas trans durante a pandemia, o FONATRANS lançou a campanha “Sinal Vermelho” em julho de 2020, para denúncias de abusos físicos, psicológicos e a violência doméstica. “Este cenário ao mesmo tempo que nos deixou sobrecarregadas também nos deixou ainda mais preocupadas com a saúde e segurança de nossa população”, afirma Jovanna.
As dificuldades agravadas pelo isolamento social motivaram as integrantes da organização a realizar ações como a arrecadação de alimentos, álcool em gel e produtos de limpeza para atender os integrantes da organização e em alguns casos também suas famílias.
“Mais de 95% dessa população vive do mercado de prostituição e nós entendemos que essa população precisa de outras opções e oportunidades para poder escolher em qual delas atuarem. E com a pandemia, essas pessoas estão sofrendo e passando muita necessidade e insegurança alimentar. Mas a gente tem conseguido articular e solucionar a fome com distribuição em massa de cestas básicas”, descreve a presidente.
O FONATRANS faz parte da campanha Tem Gente Com Fome, uma iniciativa da Coalizão Negra por Direitos que arrecada recursos financeiros em ações emergenciais de combate à fome, à miséria e à violência na pandemia de Covid-19. Em abril de 2021, o Fórum distribuiu 250 cestas básicas para famílias da região de Picos, no Piauí. Acompanhe o vídeo da presidente do Fórum, Jovanna Cardoso da Silva, abaixo: