A linguista norte-americana Anat Shenker-Osorio, da Universidade da Califórnia em Berkley, costuma dizer que o mundo ” é feito de histórias, e não de átomos”. Há mais de dez anos, Shenker-Osorio se dedica a estudar como despertar o interesse das pessoas por uma história aparentemente em crise: a da defesa dos direitos humanos. A tarefa pareceu especialmente desafiadora a partir de 2017, ano em que os Estados Unidos elegeram Donald Trump à presidência. “Conservadores são derrotados em debates centrados em valores”, defende Shenker-Osorio num dos primeiros textos do volume “Comunicação no contexto atual: um guia para comunicadores progressistas”.
Lançado no final de 2017, o guia oferece oito princípios práticos para criar narrativas inclusivas, que ajudam a conquistar novos apoiadores e incentivarem a mobilização de pessoas já convencidas da importância de defender os direitos humanos. Tudo baseado em trabalho acadêmico e exemplos de ações testadas.
O texto acaba de ser traduzido para o português. Um trabalho feito a muitas mãos por comunicadoras que compõem a Rede Narrativas — um coletivo formado, majoritariamente, por profissionais ligados a organizações sociais brasileiras. Entre elas, o Fundo Brasil. A versão brasileira começou a ser preparada pouco depois da campanha eleitoral de 2018.
“A eleição de Bolsonaro levou ao poder um grupo que se dizia abertamente contra os direitos humanos”, lembra Laura Leal, coordenadora de comunicação do Instituto Alana, e uma das participantes do esforço de tradução. Segundo ela, era importante pensar o que fazer a partir dali.
O trabalho contou com a colaboração de Débora Borges, gerente de Relacionamento com a Sociedade do Fundo Brasil de Direitos Humanos: “O texto é importante para o contexto brasileiro justamente porque, num momento de grande polarização, estimula a busca por valores compartilhados”, afirma Borges. “Essa busca está no cerne da defesa dos direitos humanos. Que afinal, valem para todas e todos”.
Recomendações
Entre acadêmicos, Sheker-Osorio ganhou fama de ser “provocativa”. A reputação é reforçada pelo humor que ela emprega em suas palestras – é comum que ela faça piadas com figuras icônicas da direita anglófila, como Ronald Reagan e Margareth Thatcher – e por suas recomendações contraintuitivas.
Segundo ela, os comunicadores progressistas precisam reajustar a maneira como contam suas histórias. O roteiro mais comum narra histórias a partir de problemas: falamos primeiro do que está errado, apresentamos propostas de solução e, então, conclamamos à ação. Essa receita de bolo tende a sensibilizar somente os convertidos: “As pessoas já têm muitos problemas, e não querem os seus”, afirma. Para ela, é preciso virar a narrativa de ponta cabeça, e construir histórias baseadas em valores comuns.
Nessa busca, vale se apropriar de um vocabulário comumente associado a grupos conservadores. Caso da “defesa da família”, por exemplo: “O casamento entre pessoas do mesmo sexo foi vitorioso porque a comunidade LGBT+ promoveu um debate sobre compromisso e família”, defende. Ao falar de valores e sentimentos, a militância LGBT+ tornou sua mensagem mais acessível e conquistou apoiadores.
Shenker-Osorio também sugere uma mudança de tom ao descrever problemas. Segundo ela, é essencial ter clareza para apontar “heróis e vilões”. “Os salários não ficam mais baixos, simplesmente. Os empresários é que decidem pagar menos aos trabalhadores”, exemplifica.
O mesmo cuidado vale ao falar dos heróis. É importante contar as histórias das pessoas que lutam por direitos, acentuando seu papel como protagonistas.
“Martin Luther King tinha um sonho, não uma reclamação”
O guia insiste, ainda, num ponto importante: segundo a autora, as narrativas mais competentes são aquelas que propõem uma mudança positiva. Para Shenker-Osorio, pouco adianta apontar erros sem sugerir soluções: “Um ‘não’ sem um ‘sim’ leva os ouvintes a pensar que estamos somente praticando a velha política de sempre”, escreve a autora. É importante tornar visível “o sonho”, a visão de mundo defendida pelas organizações e indivíduos progressistas.
O guia de Shenker-Osorio foi pioneiro numa lista de publicações que se seguiriam à eleição de Trump. Meses depois, sua mensagem seria reforçada por trabalhos semelhantes. Ainda em 2018, a Agência para Direitos Fundamentais da União Europeia publicou uma série de dicas sobre como falar a respeito de direitos humanos. E, no início de 2019, o britânico Thomas Coombes, da Anistia Internacional, lançou um “guia para comunicação baseada em esperança”. A mensagem fundamental se repete nas três obras: é importante falar sobre soluções.
Embora os princípios defendidos por Shenker-Osorio valham também para a comunicação feita no Brasil, as tradutoras fazem a ressalva de que a publicação fala da realidade norte-americana, e traz exemplos que não podem ser perfeitamente transpostos para o contexto brasileiro. “O desafio, agora, é usar esse conhecimento para pensar a realidade brasileira”, afirma Leal, do Instituto Alana.
A publicação está disponível para download no site da Rede Narrativas.