A atual agenda conservadora do Congresso Nacional ameaça conquistas relacionadas aos direitos humanos e coloca em questão os avanços estruturais que o Brasil foi capaz de fazer a partir da Constituição de 1988, documento considerado marco institucional do reordenamento da sociedade após a ditadura militar.
Até que ponto essas conquistas realmente estão ameaçadas? O que mudou na última década? Quais são os novos atores e quais são os principais desafios da sociedade civil organizada? Como obter apoio financeiro para projetos que defendem os direitos humanos?
Essas questões foram debatidas em uma roda de conversa realizada pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos na quinta-feira, dia 26, na sede da fundação, em São Paulo. A fundação recebeu convidados para o evento interno.
“Hoje as pessoas se sentem mais iguais. Temos uma geração que não aceita a hierarquização do passado”, analisou Oscar Vilhena, ex-diretor do Fundo Brasil e diretor da Escola de Direito da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
Os jovens nos protestos nas ruas em 2013 mostraram que as diferenças gritantes de renda, de educação e de acesso à Justiça, marcas históricas do Brasil, hoje não são mais toleradas. A forte rejeição a um país que só funciona para alguns, traço maior de nossa herança colonial, foi o principal saldo dos protestos de 2013.
No Brasil, a atual formação do Supremo Tribunal Federal é vista como uma garantia de manutenção dos direitos conquistados a partir da Constituição de 1988. Ao mesmo tempo, refletiu Vilhena, se a onda conservadora não for revertida no Congresso, a literatura sobre o assunto mostra que as posturas de interpretação progressistas do tribunal tendem a não resistir por muito tempo.
Ativista da luta pela reforma agrária e ex-diretor do Fundo Brasil, Darci Frigo afirmou durante a roda de conversa que a exclusão dos camponeses continua, com o domínio das grandes empresas na agricultura e a forte presença da bancada ruralista no Congresso.
Diretor de políticas públicas do Greenpeace Brasil, Sérgio Leitão vê o antigo Centrão (frente parlamentar conservadora que atuou durante a Constituinte) reorganizado e avançando sobre o campo de direitos. O Centrão foi derrotado em grande parte dos embates durante a votação da Constituição de 1988, mas conseguiu, por exemplo, impedir a desapropriação de terras produtivas para a reforma agrária, o que atrasou o processo e foi a grande derrota das forças progressistas na época.
Para Leitão, a votação do Código Florestal, em 2012, foi o marco da atual reação conservadora. O que ocorre hoje é a reorganização desse grande grupo conservador, que atua para reverter as derrotas sofridas em 1988 e agrega pautas reacionárias como a redução da maioridade penal.
“Qual é o legado que vamos defender e como?”, questionou Leitão. “Estamos preparados? Acredito que não. Há perguntas: o que fazer? Quando? Quanto vai custar”?
O que está em jogo é a defesa de conquistas como a demarcação das terras indígenas, os direitos dos quilombolas, a criação de unidades de conservação, o reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo, todos ameaçados pela onda conservadora.
Autocrítica
Além de análises, a roda de conversa teve momentos de autocrítica. A discussão sobre a redução da maioridade penal motivou a reflexão sobre a atuação da sociedade civil organizada na área da segurança pública.
A redução da maioridade penal para crimes graves, como homicídio e estupro, foi aprovada em primeiro turno pela Câmara dos Deputados, após manobra escusa de seu presidente, Deputado Eduardo Cunha. Ainda precisa ser votada em segundo turno pelos deputados e passar pelo Senado.
“Temos opiniões, mas não estão alicerçadas em informações. E enfrentamos um senso comum que é muito mais forte do que o nosso senso comum”, disse Leitão.
Faltam ferramentas no Brasil para avaliar a criminalidade entre adolescentes. Faltam dados, estatísticas, o que enfraquece o debate diante da avalanche de sensos comuns vindas dos que defendem a criminalização dos jovens.
Contexto
A dimensão internacional desse período de retrocessos foi destacada por Jorge Eduardo Durão, presidente do Fundo Brasil. Ele citou a combinação de capitalismo selvagem com autoritarismo. Sérgio Haddad, ex-presidente do Fundo Brasil e coordenador da Ação Educativa, também mencionou a crise econômica mundial e o momento de desesperança vivido pela América Latina.
A crise econômica serve de base para a retirada de direitos, corte de gastos e provoca o que Átila Roque, conselheiro da fundação e diretor executivo da Anistia Internacional, define como um momento de “esgarçamento” do tecido em que vivemos os últimos anos.
“Isso gera uma sensação de frustração naqueles que lutaram. As conquistas da direita se expandiram”, avaliou.
Para Vera Masagão, da Abong (Associação Brasileira das Organizações Não Governamentais), em que pese o quadro adverso, as organizações não governamentais estão superando o pior momento no que diz respeito à sustentabilidade do seu trabalho.
Além disso, hoje o cenário brasileiro de defesa dos direitos humanos é composto por organizações internacionais como a Anistia Internacional e os Médicos Sem Fronteiras. Isso é visto como ponto positivo, na medida em que esses novos atores ajudam a ampliar a visibilidade dos problemas sociais e ambientais no Brasil e no mundo.
Ciclo
A relação entre os movimentos sociais e o mundo empresarial foi a abordagem feita por Ricardo Henriques, do Instituto Unibanco. De acordo com ele, há empresários interessados em parcerias e que não devem ser vistos apenas como financiadores. Eles querem também ser atores sociais e o desafio é os dois lados estarem preparados para a convivência.
Idealizador do projeto circo Crescer e Viver, Junior Perim é fruto do encontro de novas e velhas gerações de ativistas. Ele recebeu apoio do SAAP (Serviço de Análise e Assessora de Projetos), da FASE – Solidariedade e Educação, onde Jorge Durão trabalha como assessor.
Morador da periferia e pobre, foi encorajado a montar uma organização não governamental, descobriu o circo, aprendeu a cobrar a responsabilidade dos meninos e meninas e defende uma vinculação entre direitos humanos e as artes.
Também representante da nova geração de ativistas, Raul Santiago, morador do Complexo do Alemão e integrante do coletivo Papo Reto, propôs a criação de um fundo de multiplicação de experiências e descreveu a dificuldade de viver em uma comunidade em que os violadores estão na porta de casa, como acontece nas favelas do Rio de Janeiro.
Professor da USP e estudioso de Marx, Jean Tible reconhece a dimensão da onda conservadora, mas também enxerga uma juventude que se movimenta, reage e não aceita retrocessos. Um exemplo é a mobilização contra a redução da maioridade penal. E também a existência de iniciativas de forte apelo simbólico, como a valorização do uso de penteados afros etc. Jean ainda destacou a força dos movimentos sociais na periferia e as conquistas LGBT.
Novo ciclo
O jornalismo independente tem muita força no atual momento, ressaltou o consultor Andrés Thompson, ex-diretor de Programas para América Latina e Caribe da Fundação Kellogg.
De acordo com ele, no mundo todo há uma apropriação do discurso em favor dos direitos, com a defesa das liberdades individuais.
Neste cenário, apoiar o desenvolvimento de ideias e de lideranças coletivas é fundamental.
A imagem usada pelo consultor Domingos Armani é a de uma geração que sofre com o fechamento de um ciclo. A roda de conversa, na opinião dele, pareceu o balanço de uma geração sobre o seu legado.
O momento é de início de transição e, em algum momento, haverá a estruturação de um novo ciclo. Armani chamou a atenção para a necessidade de pensar no potencial de contribuição das organizações do velho ciclo para o que ainda será construído.
Os questionamentos sobre a liderança vertical fazem parte dessa construção do novo ciclo. Jovens ativistas vivem um processo de defesa das lideranças horizontais, em que há mais debates, discussões e compartilhamento de responsabilidades.
As falhas na comunicação também foram ressaltadas pelo consultor Armani. O conceito de que os direitos humanos são para todos e interessam a todos não consegue chegar à sociedade.
O cidadão comum, de acordo com ele, será fundamental na nova fase. Por isso, as organizações precisam fortalecer a comunicação e alcançar não apenas os engajados na defesa dos direitos.
Em uma espécie de conclusão da roda de conversa, ficou o sentimento de que o Fundo Brasil desempenha um papel fundamental na defesa do legado conquistado e também na construção de novos direitos. O Fundo, em sua origem, fez a opção de lidar com temas comportamentais, que passaram a ocupar um lugar relevante na pauta de conflitos políticos do país.
Ainda é preciso caminhar muito na defesa dos direitos humanos e, nesse sentido, a roda de conversa foi uma oportunidade de iluminar as ideias e inspirar novos passos para ampliar o espaço de compreensão daquilo que está no centro da agenda nacional.