“Quando o Estado não te mata dentro do cárcere, ele te oferece a morte em vida. Você continua vivo, mas está morto. A prisão é perpétua para quem passa por lá”.
O desabafo emocionado é de Miriam Duarte Pereira e foi feito durante o encontro promovido pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos nos dias 29 e 30 de novembro, na sede do Instituto Pólis, na capital paulista.
Miriam relatou o sofrimento enfrentado por um de seus filhos, entre os anos de 2011 e 2019, quando esteve encarcerado. Dos três filhos de Miriam, Michael é o único sobrevivente. Por causa das inúmeras torturas sofridas ao longo de oito anos dentro do sistema prisional, hoje, com 38 anos, ele é uma pessoa com deficiência.
“O que aquelas paredes da prisão trazem para nós? A insalubridade. Quando meu filho foi preso, ele estava bem de saúde. Após cumprir a pena, ele continua encarcerado, em casa, com o lado esquerdo do corpo paralisado por conta de um AVC que teve meses depois de ser solto. Acabaram com a saúde dele. A prisão para ele será eterna”, contou a mãe e ativista, que é cofundadora da Amparar – Associação de Amigos e Familiares de Presos, em São Paulo.
Assim como o de Miriam, outros relatos foram apresentados por familiares e por sobreviventes do sistema prisional, integrantes de movimentos sociais da luta contra o cárcere e membros de mecanismos estaduais de prevenção e combate à tortura.
O Encontro de Projetos do Fundo Brasil reuniu 30 organizações, de 9 estados, de todas as regiões do país, dentre elas, grupos apoiados no edital Porta de Saída: Direitos e Cidadania das Pessoas Egressas do Sistema Prisional e selecionados no edital Enfrentando o Racismo a Partir da Base 2022. Organizações apoiadas pela Brazil Foundation na temática de justiça criminal também estiveram presentes para realizar intercâmbio e identificar oportunidades de colaboração entre organizações e coletivos.
Promovidos pelo Fundo Brasil, os encontros entre coletivos, grupos e organizações têm o objetivo de facilitar diálogos e o compartilhamento de estratégias para o fortalecimento das organizações que enfrentam violações de direitos humanos.
“Uma conversa necessária, já que uma série de políticas sociais vêm sendo enfraquecidas e a crise no sistema prisional brasileiro vem aumentando. Vemos superlotação das unidades prisionais, além das condições desumanas em que os indivíduos privados de liberdade são submetidos. As maiores vítimas da situação de superencarceramento são indivíduos negros, escancarando o racismo institucional e estrutural da sociedade”, disse Luciana Silva Garcia, do Instituto Prios de Políticas Públicas e Direitos Humanos, do Distrito Federal.
Fortalecimento institucional na luta por dignidade
O Brasil continua na terceira posição do ranking de maior população carcerária do mundo: são mais de 885 mil pessoas privadas de liberdade. Na maioria dos casos, são indivíduos presos por crimes cometidos sem violência. Nesse montante, cerca de 67,5% das pessoas privadas de liberdade são negras, segundo o Anuário de Segurança Pública 2022.
Contundo, em 2021, a taxa de presos sem condenação, chegou a 43,25%. O menor registrado nas prisões brasileiras desde 2005. Mesmo com esse avanço, os números estão muito aquém do esperado pelas organizações que trabalham pelo fim do encarceramento em massa.
Estes temas também estiveram nas trocas e articulações do evento do Fundo Brasil. Os grupos presentes no Encontro de Projetos foram convidados a encontrar caminhos possíveis para o aprimoramento das estratégias de luta e o para desenvolvimento organizacional, a partir do debate sobre a centralidade do enfrentamento ao racismo no campo da justiça criminal.
Juliana Borges, escritora e cofundadora da Articulação Interamericana de Mulheres Negras na Justiça Criminal abriu as provocações levando aos grupos a importância de racializar o debate sobre os direitos humanos para combater as desigualdades raciais também no sistema prisional.
“A gente precisa pensar em como o racismo atravessa a lógica dos direitos humanos, que foi criada lá atrás por homens brancos, heteros, sem deficiência”, disse a escritora. “A forma como esses direitos foram criados não é possível atender às nossas necessidades. Por isso, precisamos pensar nas estratégias, nas bandeiras de luta e nas campanhas que temos que fazer para subverter essa dinâmica que nos coloca na zona do não-ser para que passem a nos humanizar”.
Nathália Oliveira, fundadora da Iniciativa Negra Por uma Nova Política Sobre Drogas, também foi convidada para apresentar a experiência da organização no campo da justiça criminal e mostrar possíveis caminhos para que os grupos criem condições para o fortalecimento institucional na luta contra o sistema que diariamente extermina vidas negras.
“Esse é um país punitivista. O sistema prisional é reflexo dessa sociedade que reproduz o discurso de que os presos não são sujeitos de direito e devem sofrer por descumprir as leis”, explicou a ativista. “Mas nós estamos aqui para lutar contra esse sistema que aprofunda a injustiça e a desigualdade. Para isso, precisamos nos fortalecer em rede e pensar nas etapas do nosso trabalho para que possamos ter qualidade de vida e lutar pelo que acreditamos. Mas para isso precisamos estar vivos e bem”, reforçou Nathália.
De acordo com ativistas presentes, o encontro foi uma oportunidade de se fortalecer a partir de lutas e causas similares.
“Estou muito feliz em ver que não estamos sozinhos e que em diferentes lugares do Brasil tem pessoas batalhando como a gente para construir um futuro mais igual para os nossos. Agradeço ao Fundo Brasil pelo apoio e por essa oportunidade fundamental de troca”, disse Sandro Augusto, da Associação +Liberdade, de Cuiabá/MT.