Colaboração de Rafael Ciscati
“Vou te falar de todo o meu coração: o negócio está muito feio na favela. As pessoas estão passando fome de verdade e a situação está se agravando. Está muito difícil viver por aqui. Está muito desafiador ser resistência nesses territórios.”
O desabafo é de Eliene Maria Vieira, integrante do Coletivo Mães de Manguinhos, localizado na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Em parceria com o Núcleo de Atenção Psicossocial a Afetados pela Violência de Estado (NAPAVE), o coletivo tem o apoio do Fundo Brasil no projeto “Tecendo memórias e resistências em Manguinhos”, selecionado no edital Resistência.
Nesse momento de crise social aguda no país, com a fome atingindo uma parcela altíssima da população brasileira em todas as regiões, as organizações, grupos e coletivos apoiados pelo Fundo Brasil relatam dificuldades extremas em seus territórios. São ativistas que vivenciam, na prática, os dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, a Rede Penssan, divulgado esta semana.
Segundo este levantamento, 55,2% das famílias brasileiras, o equivalente a 116,8 milhões de pessoas, enfrentam, atualmente, algum grau de insegurança alimentar – ou seja, não têm acesso pleno e permanente a alimentos. Destas, 19 milhões de pessoas, o equivalente a 9% da população brasileira, estão efetivamente passando fome. A pesquisa foi feita em dezembro em 2.180 domicílios nas cinco regiões do país, em áreas urbanas e rurais. A fome no Brasil voltou ao patamar de 2004, segundo o Inquérito.
A pesquisa também mostrou que a fome está ainda mais presente em lares chefiados por mulheres (11,1%) e em famílias negras (10,7%).
Eliene, das Mães de Manguinhos, conta que se depara com pedidos de socorro diariamente, vindos de domicílios com esse mesmo perfil. “A maioria vem de famílias comandadas por mulheres pretas. A média de dependentes delas é de 4 a 7 pessoas, e a situação só tem se agravado”, conta a ativista.
Para apoiar a sociedade civil no desafio de enfrentar a fome agravada pela pandemia de Covid-19, o Fundo Brasil uniu esforços à campanha Se Tem Gente Com Fome, Dá De Comer, mobilizada pela Coalizão Negra Por Direitos (leia mais abaixo).
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Quilombos e assentamento
Nas comunidades quilombolas, o avanço da pandemia coincidiu com a redução do valor destinado pelo Ministério da Cidadania à compra de alimentos. Em 2020, a pasta contava com R$7,3 milhões disponíveis para compra e distribuição de alimentos a “grupos populacionais tradicionais e específicos”. Valor muito inferior à cifra destinada para a mesma ação em 2019, quando chegou a R$ 20 milhões.
Vercilene Dias, assessora jurídica da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), conta que a escassez de recursos deixou as comunidades vulneráveis à fome. “E essa situação, da insegurança alimentar, se agrava a cada dia”, afirma.
Nascida no Quilombo Kalunga, em Goiás, Vercilene explica que muitas comunidades quilombolas não conseguem produzir alimentos em quantidade suficiente para alimentar toda sua população. A situação é pior para aqueles territórios que não foram titulados, e ainda são disputados por fazendeiros. “Como são territórios coletivos, os quilombos têm dificuldades para adquirir financiamento para atividades agrícolas. Isso desestrutura a produção de alimentos”, diz ela.
O Auxílio Emergencial de 2020 não foi suficiente para garantir a segurança alimentar das famílias mais pobres. O levantamento da Rede Penssan mostra ainda que 28% das famílias que receberam o benefício viveram insegurança alimentar grave, e 37,6% viveram de forma leve.
Em Maringá, no Paraná, a Associação de Trabalhadores na Educação e Produção em Agroecologia Milton Santos (Atemis), organização também apoiada no edital Resistência, tem feito ações em conjunto com o assentamento e acampamento de reforma agrária para distribuir os alimentos produzidos pela agricultura familiar para a população em situação de vulnerabilidade social. Foi o caminho encontrado para mitigar a escassez vivida por quem precisa se proteger do coronavírus e lutar pela vida.
“Observamos um grande aumento da fome da região, sobretudo nas comunidades mais carentes, que contavam com auxílio do governo e pararam de receber. É triste ver que algumas famílias precisam escolher qual refeição fazer durante o dia. Toda a situação causada por essa doença, sem vacina, sem alimento, é como estar em um avião sem piloto”, avalia Antonio Kanova Junior, secretário-adjunto da Atemis.
Desigualdades regionais
As desigualdades regionais também têm peso decisivo na proporção da população atingida pela fome. A pesquisa da Rede Penssan mostrou que Norte e Nordeste têm mais domicílios em situação de insegurança alimentar grave. Na região Norte, 18,1% das famílias relataram passar fome. No Nordeste, a proporção chega a 13,8%. Nessas regiões também estão os maiores percentuais de perda de trabalho formal e informal.
Em Belém, capital do Pará, o Coletivo Sapato Preto fez alterações no projeto apoiado pelo Fundo Brasil para ajudar mulheres negras, lésbicas, bissexuais e trans que estão em situação de insegurança alimentar agravada nos últimos meses. O Coletivo Sapato Preto tem apoio no edital Enfrentando o Racismo a Partir da Base.
“A fome vem sendo uma realidade latente e vem acompanhando o crescimento da crise do coronavírus. Muitas mulheres LGBTs e negras daqui fazem parte do mercado informal. Na região, cerca de 70% fazem parte deste mercado e muitas perderam seus empregos. Então são pessoas que estão passando muita vulnerabilidade alimentar e que a gente está tendo que auxiliar”, explica Darlah Farias, coordenadora do coletivo.
Em Salvador, bairros da periferia como Santo Inácio, Calabetão, Mata Escura e adjacências já enfrentavam, antes da pandemia, problemas estruturais como desemprego e falta de acesso à saúde que levavam a uma situação de exclusão e precariedade. Violência e fome são algumas das dificuldades vivenciadas continuamente pelas populações dessas áreas.
Para Milca Martins, do Coletivo de Mulheres Creuza de Oliveira, que promove os direitos das mulheres negras nessa região periférica da capital baiana, é possível que ainda mais pessoas estejam passando fome. “Aqui na região onde estamos, se a gente for fazer o mapeamento, a situação é com certeza mais alarmante”, disse.
O coletivo foi apoiado pelo Fundo Brasil no edital 70 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Diante da emergência da pandemia, teve um pedido atendido no Fundo de Apoio Emergencial:Covid-19 e recebeu recursos para fornecer alimentos e itens de primeira necessidade às famílias que estão pedindo socorro. Para Milca, são essas colaborações que têm feito as famílias se manterem erguidas.
“A gente conseguiu comprar cestas básicas e ajudar mais de 500 mulheres. Material de limpeza, material de higiene e cestas foram entregues. Tinha mulher que estava indo para os lixões, nas reciclagens, se expor ao risco do vírus para conseguir o sustento. Vinham mulheres e jovens na minha casa à noite para pedir ajuda”, comenta.
O Coletivo de Mulheres Creuza de Oliveira ainda comprou uma máquina de costura e passou a produzir máscaras para as famílias. “Foi uma forma que a gente também encontrou de ajudar as mulheres. Fizemos uma formação com 10 mulheres e começamos a fazer as máscaras. E entregamos o kit com máscaras, alimentos, material de higiene”, disse a ativista.
Se Tem Gente com Fome, Dá de Comer
Para ajudar o enfrentamento da pior crise humanitária dos últimos tempos, o Fundo Brasil está apoiando a campanha Se Tem Gente com Fome, Dá de Comer.
A iniciativa da Coalizão Negra por Direitos, em parceria com diferentes movimentos e organizações da sociedade civil, busca garantir recursos para alimentar 222.895 famílias mapeadas em todo o país, por um período de três meses.
Os esforços do Fundo Brasil para apoiar essa ação visam ajudar na divulgação da campanha e servir como uma ponte entre doadoras e doadores e essa ação humanitária fundamental no momento mais grave da pandemia de Covid-19 no Brasil.
A doença já matou mais de 330 mil pessoas, e levou fome, miséria e violações contínuas de direitos humanos às comunidades mais vulnerabilizadas. Toda a arrecadação será direcionada à campanha, que vai distribuir alimentos e itens de higiene e limpeza. A distribuição será feita por meio dos pontos físicos onde estão as mais de 200 organizações que compõem a Coalizão Negra por Direitos. Cada família receberá, por mês, o equivalente a R$ 200 em produtos
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Doe agora! Divulgue a campanha! A fome tem pressa, sua ajuda salva vidas.