A história de Alane Reis é dividida entre Salvador, a capital da Bahia, onde nasceu e mora atualmente, e Cachoeira, cidade do Recôncavo Baiano que é a origem de sua família paterna e para onde mudou quando foi cursar Jornalismo.
Essas raízes já são suficientes para explicar a força do ativismo dessa mulher de 25 anos.
Cachoeira é a sede da Irmandade da Boa Morte, organização formada por mulheres negras que começou a se organizar para comprar alforrias no tempo da escravidão.
A cidade é um dos cenários da infância da ativista e, em 2010, passou a ser sua moradia por causa do curso na UFRB (Universidade Federal do Recôncavo Baiano). Foi um período de fortalecimento da identidade e do orgulho.
“Cachoeira é um berço preservado da cultura de matriz africana, na religiosidade, na vida em comunidade, na fala, na estética. Toda cultura remete nossa ancestralidade”, afirma.
Mesmo assim, o racismo está presente. Políticos e empresários são, na maioria, brancos e descendentes de escravocratas.
O mesmo acontece em Salvador, cidade em que 80% da população é negra e, mesmo assim, o racismo é manifestado de diversas formas, como no extermínio de jovens negros pela polícia; no feminicídio de mulheres negras; na negligência institucional diante da violência; no domínio branco nos espaços de poder; e no rendimento 48% menor dos trabalhadores negros, só para citar alguns exemplos.
Alane começou a perceber o racismo e o machismo ainda muito jovem. Na infância, as situações injustas e violentas já a incomodavam. Em casa, na hora das divisões das tarefas domésticas, não concordava com os critérios. Ela era sempre cobrada para ajudar a mãe. O irmão era escalado para fazer isso apenas uma vez por semana.
Nas brincadeiras de rua, era chamada para voltar para casa mais cedo. O argumento era que o irmão era mais velho, então podia ficar mais tempo fora. A superproteção, avalia, é típica das famílias negras, diante dos perigos do racismo.
“À medida em que fui entendendo como o mundo era racista, machista e preconceituoso com todos que fogem um pouco do padrão, aquilo despertou em mim vontade de reação. Sabia que me envolveria com direitos humanos ainda muito nova”, lembra. “Era uma daquelas crianças questionadoras”.
Aos 14 anos, quando cursava o ensino médio, Alane participou do grêmio estudantil motivada pela vontade de levar a opinião dos alunos para a agenda política da escola.
Em grupos culturais, perdeu um pouco da timidez ao ter aulas de teatro. Começou a compreender melhor quem era e o que poderia fazer para ajudar a transformar o mundo.
Na universidade, toda essa energia aflorou. A jornalista entrou para o Akofena – Núcleo de Negras e Negros Estudantes da UFRB. Ficou no coletivo, totalmente voltado à militância política, durante toda a graduação. Ali tornou-se óbvia sua necessidade de militar.
“Não poderia ver tanta injustiça, tantas mazelas para o meu povo e seguir minha vida sem fazer nada. Nessa época, eu e meus colegas brincávamos que o racismo e todas as suas formas mais cruéis de intersecções eram como a pílula vermelha da Matriz: uma vez tomada não poderíamos voltar atrás”, analisa.
A partir do Akofena, ela conheceu outros movimentos sociais e percebeu que era preciso lutar pelo direito à comunicação. Alane vê os corpos das negras e dos negros como os mais violados pela mídia: criminalizados, escrachados, expostos.
Com todas essas informações na cabeça, resolveu convidar colegas do curso de Jornalismo para criar a Revista Afirmativa. O objetivo: produzir jornalismo destinado às demandas da comunidade negra baiana.
A revista, apoiada pelo Fundo Brasil por meio do projeto “A juventude comunica pelo direito à vida”, faz parte do Coletivo Afirmativa, que produz a publicação e atua na agenda pelo direito à comunicação na Bahia. Uma das realizações do projeto é a produção de uma série, com premiação em roteiros de audiovisual, em parceria com o Coletivo de Cinema Negro Tela Preta. Alane também faz parte desse coletivo.
“Tive também a felicidade de ser encontrada pelas mulheres do Odara – Instituto da Mulher Negra, organização feminista negra da qual faço parte e onde tenho aprendido e construído com a força transformadora das mulheres negras, as únicas com condições de produzir uma mudança efetiva nesse país”, diz.
Na Revista Afirmativa, Alane é fundadora, coordenadora, editora, produtora e repórter.
“Esse apoio do Fundo Brasil é extremamente necessário. A gente vive uma era em que existe um boom das iniciativas da comunicação negra no país. A população negra tem um histórico secular, desde o século 18, de usar a imprensa negra como forma de resistência. Só que a gente sempre encontra as limitações financeiras, estruturais, tecnológicas”, afirma.
No Odara, ela é jornalista e militante. A organização é apoiada pelo Fundo Brasil por meio do projeto “Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar…”
“Quando a gente pensa quem é a cara da luta contra o genocídio das pessoas negras no Brasil, a gente pensa automaticamente nas mães dos jovens negros vítimas do Estado, seja ele em qualquer circunstância de morte”, reflete.
Para Alane, a militância tem o poder de salvar vidas. Ela conhece várias histórias de pessoas que talvez nem estivessem vivas ou estariam conformadas com uma rotina de humilhações sem o ativismo.
São pessoas que se perceberam fortes a partir do contato com a militância, que entenderam as suas possibilidades. Perceberam que as histórias não precisam ter um fracasso no final, mesmo que elas tenham nascido e crescido em meio à violência.
Fundo Brasil
O Fundo Brasil é uma fundação independente, sem fins lucrativos, que tem a proposta inovadora de construir mecanismos sustentáveis para destinar recursos a defensores e defensoras de direitos humanos em todas as regiões do pais.
A fundação atua como uma ponte entre organizações locais e potenciais doadores de recursos.
Em dez anos de atuação, a fundação já destinou R$ 12 milhões a cerca de 300 projetos em todas as regiões do país. Além da doação de recursos, os projetos selecionados são apoiados por meio de atividades de formação e visitas de monitoramento que fortalecem as organizações de direitos humanos.
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Alane é a terceira mulher guerreira retratada na série #ElasTransformam, realizada pelo Fundo Brasil.
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