“Minha vida, eu não sei mais o que fazer. Estou há 20 dias com febre. Ela vai e volta. De vez em quando, dor de cabeça e tosse seca. Não sinto gosto de nada. E nem cheiro de nada. Estou apavorado. Não sou só eu. Tem vários com esses sintomas, vida.”
Este é o trecho de uma carta que relata a angústia e a realidade vividas do lado de dentro de uma das penitenciárias de São Paulo, durante os primeiros meses da pandemia do coronavírus. Se dirigindo à sua companheira, o homem encarcerado relata como a Covid-19 se alastrava dentre aqueles que estavam sob custódia do Estado.
Outras cartas como essa, além de dados, estudos, pesquisas e notícias, foram reunidos na exposição virtual COVID², a pandemia nas prisões, lançada no dia 14 de julho. O Memorial online é um desdobramento do Projeto Infovírus, observatório da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que desde 2020 agrupa registros sobre o avanço da pandemia nas prisões.
O projeto é elaborado coletivamente por grupos de pesquisa em criminologia e recebe apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos, por intermédio do edital Direitos Humanos e Justiça Criminal – Combatendo o Encarceramento em Massa no Brasil.
A proposta selecionada para apoio tem como objetivo a pesquisa sobre os fluxos do sistema de justiça no contexto da pandemia e rodas de conversa com organizações de familiares de pessoas privadas de liberdade.
“O Fundo Brasil contribuiu com uma parte das bolsas de pesquisadores que atuaram no levantamento de dados do memorial. O projeto contou também com outros apoios”, explica Marília de Nardin Budó, coordenadora do Infovírus.
Etapas da visita virtual
O memorial está organizado em três partes. A política do negacionismo registra a conduta do poder público no contexto geral da pandemia com destaque para a linha do tempo, que revela o descaso com a situação prisional. A seção Cartas de amor e despedida registra correspondências de pessoas privadas de liberdades anunciando as violências ocorridas no contexto da expansão da Covid-19 nas prisões.
Por fim, o item Coronavírus não é habeas corpus registra a postura do sistema de justiça por meio de processos que mostram como a negação do acesso aos direitos dos presos foi decisiva para mais mortes e mais violências neste período.
O Memorial é um esforço para registrar uma história de dor e de muita violência estatal numa linguagem mais acessível e politicamente comprometida com os direitos humanos.
“A publicação deste acervo tem a pretensão de fomentar o debate público sobre uma parcela da ação do Estado pouco enfatizada na cobertura sobre a pandemia e também sublinhar o papel fundamental das organizações de familiares e amigos de pessoas privadas de liberdade que, de maneira muito comprometida, denunciaram permanentemente as violações de direitos ocorridas no cárcere ao longo de todo este período”, diz Felipe da Silva Freitas, coordenador do projeto.
Apuração e levantamento de dados
O memorial se concretizou por intermédio do trabalho voluntário das pesquisadoras e pesquisadores que, desde abril de 2020, atuam no projeto Infovírus. As informações colhidas por esse grupo e publicadas nas redes sociais são a principal fonte de tudo o que compõem o acervo digital.
Além disso, há também o apoio das professoras Letícia Nedel, Renata Padilha e Thainá Lopes, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que orientaram sobre as técnicas de museologia para catalogar e classificar todo o acervo.
“O material, com o qual trabalhamos neste memorial, consiste em matérias de imprensa, processos judiciais, as publicações do próprio Infovírus e as contribuições voluntárias que foram sendo obtidas nas conversas com membros das Defensorias Públicas e das organizações que atuam na luta pelo desencarceramento e na articulação de familiares de pessoas privadas de liberdade”, relata Felipe Freitas.
Dentre os dados levantados, foi constatado que a revisão das prisões provisórias não aconteceu na proporção devida. Além disso, a separação efetiva dos presos em situação de maior vulnerabilidade não foi feita, a adoção de medidas de atenção à saúde básica também não se executou nos estados e, para piorar, a vacina seguiu sendo aplicada de maneira tardia e sem transparência pública.
Marília de Nardin nos conta que a omissão do Estado diante dos inúmeros gritos de socorro emitidos por organizações de familiares, entidades de direitos humanos e ativistas dos direitos no universo prisional foram o que mais chamou a atenção dos organizadores da pesquisa.
“Penso que a principal lição diante desta tragédia é que não podemos vacilar. As pessoas que têm compromisso com a vida e com a defesa dos direitos humanos precisam estar atentas à realidade do sistema carcerário”, alerta Marília. “É preciso exigir a interrupção desta lógica de expansão permanente das punições e da privação de liberdade. Não é admissível que sigamos encarcerando tantas pessoas e em condições tão abusivas”, finaliza a coordenadora do projeto.
Edital Direitos Humanos e Justiça Criminal
O Fundo Brasil de Direitos Humanos apoia, desde a sua fundação, organizações e movimentos no campo da justiça criminal. O objetivo é contribuir com novos/ atores/as no campo da luta pelo desencarceramento o país para superar a cultura punitivista, pelo fim da banalização das prisões como mecanismo de discriminação e aprofundamento de desigualdades.
No edital Direitos Humanos e Justiça Criminal – Combatendo o Encarceramento em Massa no Brasil, foram selecionadas um total de 15 iniciativas, de 10 estados do país, nos dois eixos de trabalho definidos pelo edital: o Eixo 01 é focado em combater o uso abusivo de prisões provisórias no país; e o Eixo 02 é voltado a projetos de promoção dos direitos das pessoas egressas do sistema prisional, com foco em evitar ciclos de reencarceramento. O edital foi viabilizado pelo Fundo Brasil com apoio da Fundação Oak especificamente para o Eixo 01.