A juíza Kenarik Boujikian, conselheira do Fundo Brasil de Direitos Humanos, sofreu um corte no supercílio provocado por estilhaço de bomba jogada pela polícia ao participar de uma manifestação em São Paulo, no dia 31 de agosto. No hospital, levou quatro pontos e passou por uma tomografia.
No artigo a seguir, Kenarik, uma ativista dos direitos humanos, relata o que ocorreu e defende o direito às manifestações.
Também presta solidariedade à estudante Deborah Fabri, que teve o olho perfurado no mesmo dia.
“Nenhum direito a menos! Muito menos o de protestar!”, afirma a juíza.
O direito à livre expressão, organização e manifestação é uma das temáticas apoiadas pelo Fundo Brasil.
Leia o artigo, publicado originalmente nos sites “Vi o Mundo”, “Empório do Direito” e “Justificando”:
Polícia vandaliza o direito de protesto
Por Kenarik Boujikian
(um abraço solidário para Deborah Fabri, estudante da UFABC, que perdeu a visão, atingida por estilhaço de bomba)
No 31 de agosto, ao voltar do trabalho, minha filha Isabel se preparava para ir ao ato de protesto contra o GOLPE, que se realizava aqui em São Paulo, como em diversas cidades. Fui junto.
Quando chegamos na Avenida Paulista, a passeata já tinha saído do MASP e seguia em direção ao centro. Passamos por uma fileira de policiais militares e logo conseguimos alcançar o final da passeata. Caminhamos rapidamente por toda a Paulista, pois minha caçula pretendia encontrar com amigas, que estavam mais adiante, e íamos encontrar a outra filha, Mariana, que sairia da USP e também estaria à frente.
Foi uma manifestação absolutamente pacífica, com brados e vários dizeres. Pude cantar várias deles, inclusive um dos meus favoritos: “Nem recatada e nem do lar: a mulherada tá na rua pra lutar”!!
Passei em frente ao prédio da Polícia Militar/Bombeiros que fica na Consolação, onde estava uma fileira de policiais, fortemente armados, com escudos, sendo fotografados por vários profissionais.
Durante todo o trajeto, não presenciei um ato sequer de violência.
Seguimos mais adiante, passamos da altura da Rua Maria Antônia. Um grupo entrou na Rua Amaral Gurgel e uma parte ficou mais atrás, e começou a dispersão, porque as bombas começaram a pipocar. De longe eu via a fumaça se erguer e ouvia os estrondos. Não pensei que poderia ser atingida, dada a relativa distância que me encontrava.
Atravessei a rua em direção à Praça Roosevelt e estava quase em frente à Igreja da Consolação. De repente, um forte impacto na minha testa. Uma dor, uma ardência e o sangue jorrando, de modo que nem conseguia abrir o olho e não entendia o que estava acontecendo. Não sabia onde estava ferida e tossia muito porque a garganta também ardia.
Minha filha ajudou a estancar o sangue, apertando o casaco dela no ferimento. Vi que não tinha sido atingida no olho. Era um corte no supercilio. Fui para o hospital, onde soube que uma pessoa também dera entrada com um ferimento de estilhaço na perna. Deram quatro pontos no meu supercílio. Fizeram tomografia e tive certeza que não tinha acontecido nada na cabeça.
De tudo que vivi e presenciei no 31 de agosto, que se repetiu no domingo, dia 4, é forçoso que eu conclua que a polícia vandaliza o direito de protesto, um dos primeiros direitos humanos, mas que não paralisará as pessoas, porque estão todos na base: nenhum direito a menos!
Por certo que a repressão policial, a violência contra os manifestantes que de forma pacífica estão a exercer o legitimo direito de reunião e livre manifestação e expressão, não é gratuita e não é fruto do despreparo da polícia.
É pura escolha. Tem finalidade. Querem proibir o exercício de direitos próprios de uma sociedade democrática. Querem incutir o sentimento de medo, que como canta Lenine: “O medo é uma força que não me deixa andar” (Miedo).
Mas se enganam redondamente, pois encaramos todos os medos, não vamos deixar que eles peguem o amor e não vamos deixar que eles apaguem a vida.
Os mais de cem mil manifestantes de domingo, um mar de pessoas (jovens, crianças com familiares, idosos, estudantes, trabalhadores, de todas as faixas etárias) que caminharam e protestaram, da Paulista até o Largo da Batata, saem mais fortes com cada passo que deram por aquele asfalto. Saem mais fortes com a repulsa à violência.
Não tenho dúvida que parte da imprensa, a que não exerce o seu papel com um mínimo de ética, dirá que se tratava de quebra-quebra, de baderna. Não mostrará as cantorias, não mostrará que caminhavam pacificamente a exteriorizar o seu pensar. Sabemos das várias metodologias que a imprensa utiliza para manipular a realidade, como bem ensinou Perseu Abramo (em “Padrões de manipulação da grande imprensa”), mas testemunhos não faltam para dizer que a festa da luta foi bonita pá! Até o momento que a polícia resolveu atacar barbaramente a população.
Nesta quadra, é bom lembrar o sentido do direito fundamental que a Relatoria Especial para Liberdade de Expressão, da OEA (Organização dos Estados Americanos), indica no documento “Marco Jurídico sobre o direito à liberdade de expressão”, para as três funções primordiais da mesma: a) trata-se de um dos direitos individuais que de maneira mais clara reflete a virtude que acompanha e caracteriza os seres humanos: a virtude única de pensar o mundo desde a perspectiva própria e de comunicar-se com outros para construir um modelo de sociedade; b) em segundo lugar, a importância da liberdade de expressão deriva de sua relação estrutural com a democracia, qualificada como estreita, indissolúvel, essencial, fundamental, de modo que o objetivo do artigo 13 da Convenção Interamericana é o de fortalecer o funcionamento do sistema democrático pluralista, mediante a proteção e fomento da livre circulação de informações, ideias e expressões de toda índole; c) finalmente, trata-se de um ferramenta chave para o exercício dos demais direitos fundamentais e por esta importância, encontra-se no centro de sistema de proteção dos direitos humanos.
O rompimento institucional democrático, que tivemos com o impeachment da presidenta Dilma, está sendo aprofundado e, nesta medida, pretende atingir radicalmente os direitos civis, econômicos e sociais.
A truculência da ação da polícia contra o primeiro dos direitos fundamentais, o direito de protestar, conectado com o direito de reunião, manifestação e expressão, é para impedir a luta contra o retrocesso em relação aos demais direitos. É tentar tirar a base para a preservação dos demais direitos.
O direito de protestar é o único que pode fazer valer os demais direitos fundamentais, especialmente destinados aos mais vulneráveis e à diversidade.
Numa sociedade democrática, as marchas e manifestações devem ser protegidas pela polícia e pelos poderes do Estado, e não atacadas.
Nenhum direito a menos! Muito menos o de protestar!