Protagonistas da luta coletiva por direitos humanos no país estiveram juntas, na tarde do dia 23 de agosto, para a roda de conversa “Na cidade, no campo e na floresta: o que as mulheres querem para o futuro do trabalho?”. A atividade, realizada em um café na zona norte de São Paulo e transmitida ao vivo para organizações parceiras, foi promovida pelo Labora – Fundo de apoio ao trabalho digno, uma iniciativa do Fundo Brasil de Direitos Humanos em parceria com a Laudes Foundation, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
A realização da roda de conversa trouxe contribuição para que venha a ser cumprido o objetivo do Labora: o fortalecimento de coletivos, grupos e organizações de todo o país na luta por trabalho digno com justiça racial, de gênero e socioambiental. As lideranças convidadas dialogaram sobre a necessidade urgente de ampliação da rede de proteção social para as mulheres negras, quilombolas, indígenas e transexuais.
Dados da desigualdade
O desemprego entre as mulheres negras foi o dobro do registrado entre homens brancos no segundo trimestre de 2022, segundo o Dieese, uma das organizações apoiadas pelo Labora. O salário médio de homens brancos foi de R$ 3708; enquanto o salário de mulheres negras foi de R$1705 no mesmo período.
Fernanda Sucupira, da Repórter Brasil, mediadora do encontro, trouxe esses e outros dados que refletem a desigualdade do trabalho para estimular o debate.
Mazé Morais, secretária de Mulheres da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e coordenadora geral da Marcha das Margaridas, lembrou da origem, como agricultora familiar no Piauí e defendeu a participação das mulheres na implementação de políticas efetivas estruturantes para a agroecologia, preservação de biomas, biodiversidade e sustentabilidade da vida.
“Sem feminismo, não há agroecologia. Nós, as trabalhadoras do campo, das florestas, das águas, somos as grandes guardiãs de conhecimentos ancestrais”, disse a ativista. Para Mazé, a garantia de direito ao trabalho digno não acontecerá sem a garantia de direito à terra e ao território. “Significa garantir proteção contra os grileiros que invadem nossas terras, contra o agronegócio que pulveriza e joga veneno sobre nossos corpos e destrói nossa biodiversidade”, definiu.
O discurso em defesa da terra e do território como forma de garantia ao trabalho digno foi corroborado por Telma Taurepang, coordenadora da UMIAB – União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira. A líder indígena cantou para as ancestrais que lutaram por mais direitos e mais políticas públicas e pediu por mais proteção social. De acordo com os primeiros dados do Censo de 2022, a população indígena no Brasil é de 1,7 milhão de pessoas, das quais 63% vivem fora de terras demarcadas. “O agronegócio não planta para nós, planta para o capitalismo. Nós, mulheres indígenas, plantamos para o bem-viver que chega na mesa das famílias por meio de alimentos saudáveis”, abordou.
Eleita pela revista The Economist como uma das 50 pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade, a psicóloga e ativista Cida Bento enfatizou que a conquista do trabalho digno se dará pela disputa coletiva dos espaços decisórios. “Mulheres com os mesmos direitos e as mesmas oportunidades, com a mesma possibilidade de treinamento, de ascensão, isso é trabalho digno”, determinou. “É ter um bem-viver, ter uma boa relação com o meio ambiente e com os grupos dos quais fazemos parte”, completou a fundadora do CEERT – Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades.
Pelo fim do genocídio e por mais direitos
Protestos em todo o país contra a violência policial reuniram coletivos, organizações e movimentos sociais no dia 24 de agosto. Centenas de pessoas foram às ruas manifestar repúdio às chacinas que, entre o fim de julho e início de agosto, provocaram a morte de 32 pessoas na Bahia, 16 mortes em São Paulo e 10 no Rio de Janeiro. A autora do livro “O Pacto da Branquitude” relaciona a opressão das forças de segurança do Estado como um dos obstáculos para o trabalho digno.
“O mundo do trabalho ideal para uma mulher negra é aquele que permite que ela possa viver em paz. A maioria dos assassinados nas chacinas no Rio, São Paulo e Salvador é negra. Não há tranquilidade para uma mãe quando seu filho ou filha é visto como parte de um grupo perigoso que deve ser abatido”, disse Cida Bento. “Há de se ter investimento para que, no território onde a gente estiver, a gente possa estar de forma digna”, complementou.
Realidades que se cruzam na exclusão e marginalização. Keila Simpson, presidenta da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), pede que a população modifique o olhar sobre o corpo da travesti. Dossiê produzido pela entidade revela que 131 pessoas trans foram assassinadas em 2022. “São corpos que têm o direito ao convívio familiar e à educação negados desde a infância até a vida adulta. Como uma travesti vai trabalhar com público se este público a rejeita?”, indagou. De acordo com a pesquisa “1º Mapeamento de pessoas Trans na cidade de São Paulo, apenas 39% da população de travestis e 48% de mulheres trans concluiu o Ensino Médio.
O olhar estigmatizado, diz Keila, exclui esta população de oportunidades no mercado de trabalho e leva à prostituição não como escolha, mas como única forma possível de sobrevivência. Em 2021, 78% dos assassinatos de travestis e transexuais foram cometidos contra profissionais do sexo. “Hipersexualizaram nossos corpos. Se conseguirmos entrar no mercado de trabalho formal, a primeira coisa que vai ser colocada para uma travesti no emprego é a maneira como faz os relacionamentos afetivos.”, refletiu.
Representante do Labora apresenta objetivos e estratégias
Superintendente do Fundo Brasil e representante do Comitê Gestor do Labora, Ana Valéria Araújo apontou um dos elementos fundamentais da estratégia da instituição para definir objetivos: a escuta do campo. “Essa é a maneira que o Fundo Brasil faz. A gente não tem recursos intermináveis. As violações são imensas. A destinação de recursos tem de ser estratégica para que estes recursos possam se multiplicar em si mesmos. Essa roda de conversa é mais uma etapa importante ao trazer a fala de lideranças que estão na ponta, que podem dizer o que é trabalho digno e orientar o que é prioridade”.
A criação do Labora foca a organização e a luta por direitos de grupos da sociedade civil nos campos da informalidade e precarização, compreendendo que marcadores de gênero, étnico, racial, sexualidades, deficiência e de território condicionam as desigualdades do trabalho no país. Ana Valéria trouxe levantamento do IBGE, produzido em 2022, que apresenta retrato desta realidade. Cerca de 40% dos trabalhadores brasileiros estão na informalidade, a maioria mulheres e homens negros. Mais de 45% das pessoas que abrem MEI, segundo o Sebrae, tem renda de apenas um salário-mínimo.
“A gente está ouvindo um discurso de modernização das relações de trabalho que priorizam demandas do mercado em detrimento das pautas sociais. É um discurso com uma conotação perversa que coloca os direitos assegurados na Constituição de 1988 como obstáculos ao crescimento econômico. Passados quase seis anos da Reforma Trabalhista, o que a gente vê é o aumento do trabalho informal e precarizado”.
Por meio do Labora, disse Ana, o Fundo Brasil reafirma a estratégia de potencializar instituições que direcionam sua força para a transformação e justiça social. “A sociedade tem que estar firme e forte para que possa demandar políticas públicas aos governos para que promovam as mudanças desejadas”.
Mãe Bernardete é lembrada no encontro
Fernanda Sucupira prestou homenagem a Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete, assassinada a tiros dentro do quilombo Pitanga dos Palmares, na Bahia, em 17 de agosto. A memória da liderança quilombola também foi reverenciada nos atos realizados em 24 de agosto contra o genocídio do povo negro praticado pelo Estado.
Genocídio que os povos indígenas conhecem desde a chegada dos primeiros europeus ao território brasileiro, há 523 anos. Segundo Telma Taurepang, a violência praticada hoje pelo Estado se apresenta ao negar direitos fundamentais: o direito ao território, expropriado por latifundiários, e o direito à rede de proteção social.
“Como podemos falar de trabalho digno quando não nos é oferecido o direito a uma educação de qualidade, o direito à saúde. Estamos atrás do direito a uma aposentadoria digna para uma mulher indígena que hoje completa 55 anos e recebe um salário mínimo dos mínimos. Queremos o direito de viver da terra. Queremos políticas públicas que nos garantam uma vida digna”, concluiu.