No final de setembro deste ano, a socióloga Margarida Genevois encheu uma sacola de frutas e caixinhas de água de coco e foi visitar um velho amigo. Ela faria uma viagem longa e, antes do embarque, quis se despedir do antigo companheiro de luta e resistência.
“Ele estava sempre sentado na poltrona, comendo lima e tomando água de coco. Achava que era o segredo da saúde. Era o que mais gostava”, lembra.
O amigo era o cardeal dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo, morto no dia 14 de dezembro, aos 95 anos, vítima de problemas pulmonares.
Na última visita, Margarida encontrou o religioso cansado, sem muita vontade de conversar, mais magro. Depois, acompanhou a evolução dos problemas de saúde dele e percebeu que a morte se aproximava. No dia da partida, ela recebeu a notícia com serenidade. Ao ler os jornais nos dias seguintes, gostou de ver o reconhecimento à atuação do cardeal, expresso em dezenas de artigos em que o religioso foi retratado como ícone dos direitos humanos.
“Ele tornou-se um símbolo da resistência”, afirma Margarida.
E é também o que ela é.
Moça criada na classe média alta e casada com um engenheiro francês que foi diretor da Companhia Rhodia Brasileira, Margarida era muito ligada aos frades dominicanos e, na linha religiosa da Teologia da Libertação, o grupo que frequentava era bastante aberto aos problemas da população excluída.
“Uma coisa puxa a outra e quando a gente vê está mergulhada até o pescoço”, conta.
Quando dom Paulo formou a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, em 1972, por determinação estatutária eram necessárias as presenças de um operário e de uma mulher. O operário escolhido foi o metalúrgico Waldemar Rossi. A mulher foi Margarida.
No início, ela ficava inibida diante de nomes como dom Paulo e os juristas Dalmo Dallari, José Carlos Dias e Mário Simas. Com o tempo, percebeu que conquistara a confiança do cardeal e transformou-se numa militante corajosa.
“Fui a primeira mulher e durante muito tempo era a única. Os advogados contavam sobre as pessoas que tinham procurado por eles para contar sobre as torturas, os desaparecimentos. Levei um susto, não tinha ideia daquilo. Ninguém sabia. Eu contava e até meu marido, amigos, ninguém acreditava. ‘Isso não é possível. Imagina’, diziam. E era possível”, recorda.
Além dos brasileiros, após os golpes militares na Argentina (1973) e no Chile (1976), perseguidos políticos dos dois países desembarcavam no Brasil apenas com a roupa do corpo. Procuravam dom Paulo para pedir ajuda e sempre encontravam acolhimento.
“Houve épocas em que o pátio da Cúria estava cheio de gente”, lembra Margarida.
O cardeal pediu para que alguém da Comissão de Justiça e Paz ajudasse nesse trabalho. Disponível para isso, Margarida começou o atendimento duas vezes por semana. Depois três. Em seguida todos os dias, de manhã e de tarde. Lá estava ela, mergulhada até o pescoço na resistência às ditaduras militares da América Latina.
“Os apelos eram muitos. Meu serviço era ouvir, fazer um resumo, depois encaminhar para os advogados da comissão e outros que tinham afinidade e aceitavam defender os perseguidos políticos”, relata.
A Comissão de Justiça e Paz protegia os perseguidos e seus familiares por meio da esfera jurídica e também oferecia acolhimento nos chamados anos de chumbo. Não era tarefa fácil. Muitos advogados não aceitavam defender presos ou perseguidos políticos. Médicos recusavam atendimentos.
“Os que aceitavam eram heróis. Arriscavam a vida, as carreiras”, elogia Margarida.
A socióloga tinha outras missões além de receber os que fugiam da repressão e encaminhá-los. Circulava pela Europa em busca de recursos para a comissão. Fala francês e, com uma carta de apresentação assinada pelo cardeal, encontrava as portas abertas. Os recursos de países como França, Alemanha e Holanda e o trabalho voluntário dos integrantes garantiram o funcionamento da comissão.
Além disso, a Comissão de Justiça e Paz coordenou estudos sociológicos que resultaram em livros como “São Paulo 1975: crescimento e pobreza”; pesquisas sobre temas como os meninos moradores de rua; jornalismo; direitos humanos e prisões.
Foi um trabalho diversificado. Foram 25 anos ao lado de dom Paulo, período que incluiu demonstrações de tratamento igualitário que até hoje emocionam Margarida.
Igualdade
“Ele sempre tinha a palavra certa para as ocasiões”, diz. “Tratava igual, não fazia diferença. Tinha muita confiança na gente. Em termos de igreja, onde o machismo é total, acho isso maravilhoso”.
Margarida representou o religioso várias vezes em congressos e seminários. Chegava e era quase um escândalo: Uma mulher representando o cardeal. Onde já se viu isso? Para dom Paulo, era natural.
Quando a pena de morte a dois presos políticos em Cuba foi divulgada, a socióloga chegou a tomar a iniciativa de divulgar uma carta de repúdio em nome do cardeal. Ele estava fora do Brasil e Margarida avaliou que, apesar da amizade dele com Fidel Castro, precisava se pronunciar em tom de protesto.
“Mandamos uma nota, protestando contra aquilo, em nome de dom Paulo. Sem dizer a ele nem nada. Me disseram: você é ousada. Mas quando ele voltou, fui lá e disse: Desculpe, mas politicamente era importantíssimo o senhor se manifestar. Ele respondeu: Fez muito bem, eu vi a nota no jornal. Quando achar que é necessário, pode fazer em meu nome”.
Ativa
Os últimos anos de dom Paulo foram de reclusão, o que a amiga achava uma pena. “A gente precisa tanto do senhor…”, dizia nas visitas que fazia a cada dois meses.
Ele acreditava, segundo Margarida, que atrapalharia o atual arcebispo caso se pronunciasse. Afirmava já ter feito o seu papel. Recebia pessoas da igreja, inclusive os quatro bispos que foram seus auxiliares e nunca se afastaram. Mas era uma rotina restrita, escolha que a amiga respeitava, mas não quer para si mesma aos 93 anos.
“Quero morrer em pé, trabalhando”, diz.
Ela é presidente do Conselho Deliberativo da Conectas Direitos Humanos. Participa de movimentos de mulheres e é ligada à Secretaria Municipal de Direitos Humanos. Criou a Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos e segue defendendo a formação como a melhor alternativa para construir um mundo melhor.
“Tem que mudar as pessoas por dentro. Tem que ser uma vivência nas atitudes, nas posições. A educação para direitos humanos começa no berço. Se não muda as pessoas, não vai mudar a sociedade”.
Margarida é uma das instituidoras do Fundo Brasil, que elogia pelo apoio a projetos de organizações que atuam em todas as regiões do país e que conseguem grandes transformações nas vidas das pessoas.
“Acho um trabalho lindo”, afirma.
Um elogio desse é um grande presente nos dez anos da fundação.