O debate “Direito à Memória e à Verdade – Reflexos da Violação desses direitos nos dias de hoje” reuniu no auditório da Ação Educativa, em São Paulo, defensores e defensoras de direitos humanos para debater o tema. Realizado pelo Fundo Brasil em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o evento contou com a presença do Ministro Paulo Vanucchi; do advogado e ex-Ministro da Justiça, José Carlos Dias; da cientista política e pesquisadora da Unicamp, Glenda Mezarobba; e do diretor do Fundo Brasil, Oscar Vilhena. A moderação coube à advogada e recém empossada conselheira do Fundo Brasil, Denise Dora. Entre as cerca de 100 pessoas na platéia, estiveram presentes representantes dos projetos apoiados pela fundação no Edital 2010.
A diversidade de pontos de vista sobre o assunto entre os próprios defensores e defensoras de direitos humanos foi um destaque. O diretor do Fundo Brasil, Oscar Vilhena, considerou importante abordar o reflexo de toda essa história nos dias de hoje. Segundo ele, a não conclusão desse processo de reconstrução histórica tem tido um efeito negativo no modo como as nossas instituições, especialmente as de aplicação da lei, realizam suas tarefas. Ele exemplifica: “Todos nós sabemos que as polícias brasileiras não passaram por um processo de reforma democrática. A polícia de São Paulo, na década de 1990, teve uma média de mais de mil homicídios por ano. A polícia do Rio de Janeiro, entre 2003 e 2009, vitimou mais de 7,5 mil pessoas. Isso é o que pratica nossas polícias no regime civil e democrático. A falta de reforma institucional, que é a falta de conclusão do processo de Justiça Transicional, nos deixa um legado que precisa ser enfrentado. E essa é a forma como o Fundo Brasil vê a questão. Nesses últimos anos, nós apoiamos 108 projetos e cerca de 25% desses convivem com a violência que as instituições da lei praticam contra os cidadãos. É o Estado de Exceção paralelo no Brasil.”
Oscar Vilhena comentou ainda a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de não rever a Lei da Anistia. A OAB impetrou o pedido de revisão para que a Suprema Corte anulasse o perdão dado aos representantes do Estado acusados de praticar atos de tortura durante o regime militar. Em abril deste ano, o caso foi julgado improcedente por sete votos a dois. Para ele, é importante frisar que a revisão da Lei da Anistia em busca da punição dos agentes do Estado que violaram direitos humanos não é um ato de revanche, como aponta uma parcela das pessoas contrárias ao pedido. “Abster-se de fazer Justiça pode impedir também que essa nova democracia que surja seja capaz de tratar com outros que eventualmente queiram cometer esse tipo de delito. E essa foi a resultante de não ter sido feito qualquer tipo de Justiça punitiva no Brasil. Nós somos, das democracia consolidadas no Mundo, aquela que tem os poderes coercitivos menos controláveis pela lei.” Para ele, um ponto positivo no parecer do relator do pedido no STF, Ministro Eros Grau, é que essa é uma questão política que ainda pode ser reconsiderada. O Brasil é réu na Corte Interamericana de Direitos Humanos na OEA em função da não punição dos agentes do Estado que violaram direitos humanos. Segundo Vilhena, a Corte pode determinar que a lei seja refeita por um ato do Congresso Nacional e que isso seja cumprido para que o Brasil não se coloque em confronto com a nova Ordem Internacional.
Denise Dora apontou que o Direito à Memória e a Verdade é um tema que não se esgota. Mundialmente, desde a Segunda Guerra Mundial, tem-se tentado revelar o que ocorreu nos campos de concentração. No Brasil, ela destacou a história de escravidão dos descendentes de africanos, que ainda não conhecemos o suficiente e que tem efeito nos dias de hoje. A conselheira do Fundo Brasil acrescentou que também o período da ditadura militar, nos anos 1960/1980, quando ocorreram torturas, mortes, execuções arbitrárias e desaparecimentos, deixou marcas na vida das pessoas e marcas institucionais profundas na história do país. “O Fundo vem trabalhando com projetos que combatem discriminação e violência institucional e entende que em todos os projetos apoiados há elementos constitutivos de recomposição da memória social histórica deste país.”
Glenda Mezarobba, que escreveu sua tese de doutorado sobre as reparações pagas às vítimas dos regimes militares do Brasil, da Argentina e do Chile, trouxe aos participantes a diferença da aplicação do que se condicionou chamar de Justiça de Transição nesses países. Ela abordou os quatro deveres que os Estados têm para lidar com os legados de violação em massa dos direitos humanos: de Justiça, de Verdade, de Reparação e de Reformar as Instituições. O dever de Justiça, especialmente, que trata de identificar, processar e punir os violadores, vem sendo realizado na Argentina e no Chile, mas não no Brasil.
José Carlos Dias, que atuou como advogado de presos políticos nas décadas de 1960/1970, destacou a presença da instituidora do Fundo Brasil, Margarida Genevois na platéia. Ele lembrou que quando estiveram juntos na Comissão Justiça e Paz, em São Paulo, a defensora de direitos humanos destacou-se como uma heroína. Diferentemente dos advogados que tinham apoio da OAB para trabalhar, a ativista enfrentava sozinha o risco de tomar os depoimentos das vítimas do regime militar e de seus familiares, no porão da Cúria Metropolitana de São Paulo. Desde aquela época, essa era uma das tentativas de buscar a verdade da história. “Nós temos o direito, como país, de conhecer nossa história na sua verdade cruel, que resulta em muitas injustiças que ainda vivemos. E a verdade do período da ditadura ainda não está descoberta”, coloca o advogado.
O ex-ministro então tocou em um ponto polêmico: a questão da revisão da Lei da Anistia. “Eu entendo que lamentavelmente a anistia não pode ser revogada porque foi uma anistia negociada. E há quem diga ‘negociada em um momento que não podíamos ter um debate absolutamente aberto’. Não é verdade. No momento em que foi aprovada houve uma posição clara da Ordem dos Advogados do Brasil aprovando o parecer do ex-ministro Sepúlveda Pertence, conselheiro da OAB na ocasião, aprovando a anistia para os perseguidos políticos e para os agentes públicos. Não era fácil apoiar isso, mas era o que era possível naquele momento.” Ele conta que defendeu mais de 500 perseguidos políticos, e que havia um “desespero” por voltar ao país. A anistia, nesse caso, foi uma coisa boa. Segundo ele, embora não seja fácil “engolir” essa verdade, estava em curso o processo de abertura e houve ampla possibilidade de debate na ocasião. “Agora, querer voltar atrás, retroagir a lei penal, é uma violência em termos de Direito Penal Democrático. Não podemos mudar a lei em prejuízo do réu. Por pior que seja o réu. Existe a lei civil que pode ser aplicada e a verdade, com a divulgação dos fatos e o julgamento histórico.”
Por fim, o Ministro Paulo Vannuchi colocou que o debate “Direito à Memória e à Verdade” é importante e deve ser feito no sentido de se buscar um resultado de união entre os defensores de direitos humanos. Como ele explica, é preciso buscar o equilíbrio para se conseguir avançar na questão da Justiça de Transição. Na semana que vem, haverá um debate sobre o projeto de lei da Comissão da Verdade, na Câmara dos Deputados, em Brasília. Marcado para o dia 14, o evento tem a proposta de discutir a matéria para tentar aprová-la ainda neste ano.
Ele aponta, por exemplo, a dificuldade de tratar a idéia da “Verdade” concomitantemente com a “Punição”: “Eu preciso fazer com que o torturador venha dizer, e não sob tortura, porque na democracia não pode existir nenhum tipo de tortura, venha dizer o que ele sabe sobre a tortura e a morte, quem matou, como matou, e onde podemos procurar corpos para devolver às famílias de 150 a 180 pessoas, que ainda não tem garantido esse direito milenar e sagrado. Se eu digo para eles, como um dos que foi depor à Câmara dos Deputados e, em meia-hora de conversa, ouviu de um deputado ‘o senhor sabe que posso dar ordem de prisão para o senhor aqui?’. Então se alguém souber de algum arquivo secreto que esteja no terceiro andar do prédio tal me diga, porque com o Ministério Público vamos tentar buscar. Mas é preciso fazer um convencimento. E o convencimento misturado com a idéia de ‘fale, porque assim que você falar, você vai ser preso, processado e vai para a cadeia’, evidentemente não é o caminho mais favorável a conseguir. (…) Esse trabalho precisa ser levado adiante de forma que somemos força entre nós. Quem vem para um debate do Fundo Brasil de Direitos Humanos é gente militante de direitos humanos. Se nós aqui não formos capazes de unificar uma posição sobre se vale a pena criar uma Comissão da Verdade – sim ou não? – ; a Comissão da Verdade pode ser um passo cujo relatório final reabra a discussão – sim ou não? -; como reagir quando daqui há alguns dias for anunciada a decisão da Corte da OEA?; como discutir amplamente temas que abriguem pontos de vista diferentes em um debate democrático? Cada um de nós tem de entrar disposto a modificar sua posição inicial. Por que se cada um de nós aceitar o debate democrático desde que a regra seja ‘o que eu penso é irredutível’, nós não teremos debate democrático, (…) no qual a melhor idéia não é nem a dele, nem a minha, mas uma terceira que agregue alguns valores de cada uma.”
Manifestando-se sobre temas da atualidade, como violência contra usuários de saúde mental e contra jovens negros, a platéia confirmou que cotidianamente os direitos humanos seguem sendo violados por representantes do Estado. O vídeo do debate estará disponível para download, neste site, a partir da semana que vem.