No dia 31 de agosto, a coordenadora do Movimento Unido dos Camelôs (Muca), Maria dos Camelôs, participava de uma reunião online com a equipe do Labora – Fundo de apoio ao trabalho digno – ao que, subitamente, precisou desligar a câmera. A Secretaria de Ordem Pública (SEOP) da Prefeitura do Rio havia iniciado mais uma operação de repressão ao trabalho dos camelôs. Maria saiu, ao lado de integrantes do coletivo, em protesto pelas ruas do Centro da cidade contra a ação do poder público. A manifestação foi reprimida por agentes da Guarda Municipal com balas de borracha, gás lacrimogêneo e spray de pimenta. Um dos agentes da corporação, ela contou, a agrediu com um golpe de cassetete na altura do ombro direito.
Onze dias depois, encontrei Maria dos Camelôs na sede do Muca para conhecer mais sobre ela e a luta por melhores condições de trabalho para os camelôs. A ativista, de 49 anos, mãe de quatro filhos, ainda reclamava de dores nas costas. Dores que não a impediam de seguir na defesa da categoria. Nossa conversa aconteceu poucas horas depois de a defensora dos direitos das trabalhadoras e trabalhadores das ruas do Rio prestar apoio a um ambulante na 5ª DP, no Centro da cidade. Maria contou que o rapaz havia sido agredido por agentes da Guarda Municipal e preso por desacato à autoridade apenas por pedir de volta a máquina de cartão de crédito que havia sido apreendida.
Esse é, há 20 anos, o corre de Maria dos Camelôs e todos os integrantes do MUCA. As pautas são as mesmas desde a criação do coletivo: aumento do número de autorização das trabalhadoras e trabalhadores, regularização dos depósitos de mercadorias, fim da política repressiva e contra o armamento da Guarda Municipal. “É triste constatar que, passado todo esse tempo, não houve nenhum avanço junto à Prefeitura. A perseguição aos camelôs só fez aumentar. A agressão aos trabalhadores só fez aumentar. São bombas de gás lacrimogêneo, bala de borracha, spray de pimenta contra nós e seguimos sem a perspectiva de que o governo sente à mesa com a gente para discutir a regulamentação da categoria”.
Sede reformada com apoio do Labora
O aniversário da instituição, celebrado no último mês de julho, veio na esteira da conquista de uma sede própria, chamada de Centro de Referência dos Camelôs. O local fica em um sobrado de dois pavimentos na avenida Marechal Floriano, próximo a locais de grande presença de ambulantes: o Camelódromo da Uruguaiana, o maior da cidade, as avenidas Presidente Vargas e Rio Branco, as mais importantes da região, e o terminal ferroviário da Central do Brasil.
A cozinha e áreas de convivência dentro do imóvel estão em reforma por meio de recursos de projeto do MUCA aprovado no Labora. Pela primeira vez, também com recursos do projeto aprovado no fundo, a equipe de Comunicação do MUCA é remunerada. Formada com a participação de camelôs, atua nas redes sociais com ações de mobilização e politização da classe trabalhadora. “A equipe está com a gente há três anos voluntariamente, nunca tinha recebido um real. Com o projeto aprovado pelo Labora, a gente consegue destinar um pouco do recurso para eles. É um trabalho muito elogiado e que enche a gente de orgulho”.
O sobrado conta ainda com uma sala para a realização de oficinas e rodas de conversas convocadas por sindicatos, associações e coletivos. No dia 1º de agosto, foi inaugurado o cineclube do Centro de Referência dos Camelôs com a exibição do documentário “Cadê o Amarildo?”, que aborda o caso do ajudante de pedreiro morto por policiais militares da UPP da Rocinha em 2013.
“Hoje eu sou uma grande leoa”
Estar na linha de frente de um coletivo era algo inimaginável para Maria dos Camelôs no início da juventude. Nascida em Minas Gerais, veio com apenas 12 anos ao Rio de Janeiro para trabalhar como empregada doméstica em um bairro de classe média alta na Zona Sul do Rio. Criada em um lar evangélico, ouvia em casa e na igreja que deveria ser uma “mulher obediente ao marido”. O primeiro casamento, aos 17, foi marcado por uma rotina de violências físicas e psicológicas. Depois de sete anos, Maria decidiu dar um basta e sair de casa com os filhos nos braços para recomeçar a vida no trabalho de camelô.
Morava em Japeri, o município de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Baixada Fluminense. Enfrentava duas horas de trem lotado para chegar ao centro do Rio e vender as primeiras mercadorias nas ruas da região.“Difícil você chegar numa entrevista de emprego e falar para o patrão que você tem dois filhos. Ele não vai dar emprego mesmo. Caí na rua para trabalhar. O trabalho em que eu conseguia ter horário para levar meus filhos à escola, levar eles ao médico quando necessário. A rua me deu a liberdade de criar meus filhos e ser quem eu sou hoje”.
Em 2003, Maria dos Camelôs e outros trabalhadores das ruas enfrentavam mais uma operação da Prefeitura na cidade batizada de “Choque de Ordem”. Apenas 15 dias depois de dar à luz ao terceiro filho, ela foi agredida com cassetetes e escudos de agentes da Guarda Municipal. “Meus pontos da cesariana abriram, quebraram o meu nariz, me bateram nas costas e na cabeça. Tentei registrar queixa na delegacia e não consegui. Fiquei muito revoltada”, lembra.
A indignação foi o combustível para a militância. Uma semana depois do confronto, os trabalhadores marcaram a primeira reunião de mobilização contra a repressão do poder público ao comércio informal. Da reunião, nasceu o Movimento Unido dos Camelôs. Ao longo destes mais de 20 anos, integrantes do coletivo estão correndo a cidade sempre que são chamados a defender um trabalhador ou trabalhadora das ruas em situação de vulnerabilidade diante do Estado. “A maioria dos camelôs é formada por pessoas pretas, faveladas, que poderia estar fazendo um monte de coisa errada. Mas está na rua, na luta de todo o dia para levar dinheiro para casa e botar comida na mesa”.
O Muca conta com uma equipe jurídica voluntária que atua contra prisões arbitrárias de camelôs. Maria lembra um dos episódios em que dois colegas das ruas foram encarcerados injustamente. “Na delegacia, os guardas colocaram um explosivo na mesa dizendo que estavam com os trabalhadores. Eles ficaram quatro meses presos sob a acusação de terrorismo. Foi uma luta muito grande nossa para tirar eles da cadeia”, recordou.
A mulher que um dia foi ensinada a ser submissa, hoje tem na ponta da língua a palavra que a define na luta por direitos. “As porradas que eu levei na rua fizeram nascer uma grande leoa. Hoje eu sou uma grande leoa”, concluiu.