Inserido nos biomas Cerrado, Amazônia e Pantanal está o município de Cáceres, que fica a 210 km de Cuiabá, capital do Mato Grosso, e ainda faz fronteira com a Bolívia, a 80 km. Cáceres é considerado um dos municípios mais importantes para o desenvolvimento da economia mato-grossense, por conta da sua localização estratégica, à beira do Rio Paraguai. Essa proximidade facilita o comércio com os países da Bacia do Prata e até mesmo com países europeus.
Entretanto, essa posição também faz do município uma passagem fácil para vulnerabilidades nas fronteiras brasileiras, se caracterizando como um dos principais corredores para o tráfico de drogas, de pessoas e exploração sexual de mulheres, crianças e adolescentes. Cáceres é uma cidade bicentenária, com raízes escravocratas, de segregação e exploração dos povos originários. Além disso, o município tem um dos piores indicadores sociais do estado do Mato Grosso. No que diz respeito às condições de vida, 26,37% da população vive em situação de extrema pobreza.
“Diante dessas características, nós mulheres pretas e indígenas periféricas ainda enfrentamos aqui o machismo, patriarcado, racismo, pobreza, falta de escolarização, desemprego, falta de saneamento básico, a ausência de políticas públicas nas periferias dos bairros, abusos sexuais e outras violências”, desabafa Sara Cristina Silva, que vê esse cenário desde sua infância na cidade. Ela é presidente do Coletivo de Mulheres Negras de Cáceres.
Foi para refletir sobre essa realidade e criar ações de enfrentamento às mazelas sociais vividas por essas mulheres e suas famílias que, em 2017, foi criado um coletivo no município. “A gente viu a necessidade de um espaço de organização social para atuação direta nas frentes antirracistas. A partir da organização de mulheres que participaram de GTs (grupos de trabalho) das Mulheres Negras, na IV Conferência Municipal de Promoção da Igualdade Racial e II Conferência Regional de Promoção da Igualdade Racial, criamos esse grupo”, relembra Sara.
Após a criação, o Coletivo passou a atuar como um espaço de articulação de mulheres negras das periferias de Cáceres, de mulheres rurais e quilombolas e, mais recentemente, tem ampliado sua atuação e fortalecimento junto às mulheres indígenas chiquitanas dessa região de fronteira.
Dentre os eixos de atuação do Coletivo estão:
As mulheres reescrevem o futuro
Desde seu surgimento, o coletivo participa a nível municipal, estadual e nacional de grupos, articulações sociais e conselhos municipais, que discutam a pauta racial e feminista.
O grupo também é responsável pela coordenação da Teia Feminista Antirracista de Mulheres Negras e Indígenas do Pantanal, com ações de intercâmbios e trocas de saberes entres as mulheres negras e indígenas e serve como braço forte para quem luta contra o racismo diariamente nesse território.
“Essa ação tem como prioridade o resgate da identidade pantaneira dessas mulheres. Pretendemos, através dela, fazer uma caravana nas comunidades quilombolas, rurais e indígenas, na perspectiva do desenvolvimento de ações em rede com outras organizações e movimento de mulheres da região e estado para o enfrentamento coletivo das desigualdades de gênero e raça”, esclarece Sara, presidente do coletivo.
Hoje, as mulheres constroem um futuro possível. Mesmo com todas as desigualdades escancaradas pela crise mundial sanitária, elas estão à frente das lutas coletivas de seus territórios, buscando o bem viver de seus integrantes. “Nós queremos com nossas ações redefinir o nosso futuro. Mostrar a nossa voz e atualizar nossas lutas, em busca de soluções, de acordo com as necessidades que também se atualizam, como aconteceu nesta pandemia”, afirma.
O coletivo no enfrentamento da Covid-19
Com a chegada do isolamento social em 2020, alguns planos foram adiados, como a abertura de uma sede e a consolidação do endereço fixo. Por outro lado, surgiram novas carências no município, que receberam a atenção imediata do coletivo. Com o agravo das desigualdades sociais, potencializadas com a pandemia de Covid-19, houve um aumento por demandas de apoio do coletivo a uma diversidade de problemas e situações diárias envolvendo aumento da violência doméstica, desemprego, abuso infantil, fome e contágio do novo coronavírus.
O Coletivo Mulheres Negras de Cáceres é apoiado pelo Fundo Brasil no edital Enfrentando o Racismo a Partir da Base – Fortalecimento Institucional e Mobilização para Defesa de Direitos, de 2020. Esse apoio possibilitou que o coletivo atendesse às novas demandas.
“Logo nos primeiros meses da pandemia, fizemos uma ação de comunicação popular com carro de som passando pelos bairros periféricos, além da comunicação constante através das redes sociais. Fizemos campanha de arrecadação de alimentos, onde doamos mais de 100 cestas básicas para as famílias. Oferecemos, também, apoio psicológico e usamos as redes sociais para abraçar mais mulheres. O apoio do Fundo Brasil tem sido fundamental para a ampliação da nossa abrangência, temos conseguido acessar grupos e locais que antes não conseguíamos”, relata Sara Cristina.
Com a crise sanitária, as ações que estavam concentradas nos bairros Cavalhada I, II e III e no Centro, chegaram a outras regiões da cidade, além da zona rural e até a circunvizinhança, através de lives nas redes sociais. O impacto foi de mais de 4 mil pessoas. Atualmente, a diretoria do coletivo conta com o trabalho voluntário de 11 mulheres.
Ana Paula Pinho da Silva, 37 anos, é nascida e criada no município de Cáceres. Filha de pai pedreiro e mãe dona de casa, foi a primeira da família a se formar em uma faculdade. A infância e a adolescência cercadas de desigualdades fizeram a professora querer lutar contra os abismos enfrentados por crianças em Cáceres.
“Tento buscar meios para que os alunos tenham seus direitos garantidos e acesso à informação. Também sou uma educadora antirracista, sei da importância de se respeitar as diferenças e fortalecer a identidade das crianças negras e indígenas, que são a maioria dos nossos alunos”, diz Ana Paula.
Essa procura levou a professora ao encontro do Coletivo Mulheres Negras de Cáceres, em 2017. Hoje, ela é uma das voluntárias nas diferentes ações de protagonismo das mulheres negras.
“Quando vejo que é possível mudar a vida de outras pessoas, por meio da democratização do conhecimento, da orientação e empoderamento, é muito gratificante. Temos muitas pontes a serem construídas ainda, porém o trabalho do coletivo, que reúne mulheres periféricas de uma cidade do interior do Brasil, é um ato revolucionário”, ressalta a professora.
Apoio do Fundo Brasil
No ano de 2020, o Fundo Brasil lançou o edital “Enfrentando o Racismo a Partir da Base – Fortalecimento Institucional e Mobilização para Defesa de Direitos” para amparar organizações da sociedade civil que atuam no enfrentamento ao racismo na base para o fortalecimento institucional de suas ações. A iniciativa recebeu o apoio da Fundação Ford, do Instituto Ibirapitanga e da Open Society Foundations.
O edital oferece apoio para organizações da sociedade civil viabilizarem sua estrutura material e condições básicas de trabalho, garantindo a sustentabilidade de suas atividades de promoção da equidade e da justiça racial.
O Coletivo Mulheres Negras de Cáceres, do Mato Grosso, foi uma das 20 organizações selecionadas.