Às margens do rio Purus, ao sul da Amazônia, a duas horas de Rio Branco, capital do Acre, estão as aldeias Apurinã e Jamamadi, nas Terras Indígenas Lourdes/Cajueiro, território compartilhado entre as duas etnias; e está também a Terra Indígena Apurinã do Valparaíso. Essas são aldeias já não tão isoladas – ou livres, como preferem dizer. Desde a década de 1950, esses grupos são massacrados pela exploração das riquezas naturais em seus territórios, vendo muitos integrantes de seus povos serem dizimados pela exploração ilegal da vegetação, da caça e da pesca comercial, o que forçou os grupos a uma mudança radical em seus hábitos.
Quem viu as primeiras gerações desaparecerem pela interferência do homem branco tenta proteger o território e dar continuidade à vida. E justamente a luta pela vida é diária, já que são constantes os conflitos com fazendeiros, madeireiros, caçadores e pescadores que invadem os territórios indígenas. Territórios estes que aguardam desde 1991 a conclusão dos estudos de identificação e delimitação de suas terras.
“Diante de um contexto político desfavorável, que vem se arrastando há anos, o processo de regulamentação fundiária torna-se cada vez mais lento e complexo, assim como a efetividade de ações de fiscalização que deveriam ser realizadas pelos órgãos responsáveis”, explica Francisco Apurinã, vice-presidente do Instituto Pupỹkary.
O Instituto Pupỹkary foi criado em 2019, justamente pensando nessa defesa da vida e do território, pelos indígenas Apurinã – que se autodenominam Pupỹkary.
“Nós criamos o Instituto para atuar em diversas frentes de trabalho, mas principalmente na proteção territorial e ambiental de nossos territórios. Porque a forma como nós, indígenas, enxergamos o mundo e a terra é diferente de como enxergam os não indígenas”, diz Francisco Apurinã.
Ele explica a preocupação com o olhar do homem da cidade sobre as riquezas naturais das florestas. “A gente tem um olhar de preservação e de manutenção dos recursos naturais e da floresta e das vidas que sobrevivem dela, para que aquilo que foi criado e deixado por nossos ancestrais possa ser infinito. Quem não é daqui tem um olhar apenas de lucro e consumo desses bens.”
Criação do instituto
O Instituto Pupỹkary estava idealizado na memória e vivência deste povo. As ideias foram reunidas aos poucos, a partir das demandas locais por resistência e sobrevivência. Após a formação dos mais jovens em especializações nas áreas de antropologia, ambiental, contabilidade, saúde, administração, linguistas, direito e outros, reuniram o conhecimento epistêmico e ontológico de seu povo e estes conhecimentos formais e decidiram lutar pela garantia e promoção de seus direitos.
“A conversa trazia tantos pensadores, intelectuais indígenas do povo Apurinã e os sábios, os nossos velhos detentores de nossos conhecimentos. Tanto é que o nosso estatuto foi pensado e produzido a partir das características étnicas Pupỹkary. O pano de fundo do nosso estatuto é a identidade e a essência do povo Apunirã”, comenta Francisco.
Reinaldo Luis Apurinã, da Aldeia Camicuã, participou do curso de elaboração e gestão de projetos realizado em fevereiro de 2021, organizado pelo Instituto Pupỹkary com apoio do Edital SOS Amazônia, do Fundo Brasil. A comunidade em que ele vive também recebeu apoio de cestas de alimentos e itens de higiene para o enfrentamento à Covid-19. Para ele, a criação do Instituto mudou a vida dos indígenas da região.
“É a realização de um sonho ver esse espaço se formando. Primeiro, por saber que é feito por indígenas Apurinã, que se formaram na cidade e voltaram para cá para ajudar nossos povos. Esse retorno para as aldeias nos fortaleceu demais e nos prepara para enfrentar diferentes problemas que vivemos diariamente”, conta.
Próximos passos
Ainda sem espaço próprio para abertura da sede, o instituto está localizado na capital Rio Branco, a 200 quilômetros das aldeias, que estão situadas no município de Boca do Acre. Os integrantes viram a necessidade de estar no centro da cidade para serem vistos e conseguirem os recursos e apoio para as aldeias.
“Ainda vamos fazer nossa sede. Estamos no começo e dando um passo de cada vez. Temos tudo desenhado em nossos planos. Porém, o que mais queremos agora é cuidar dos nossos parentes e territórios. Estamos vivendo tempos difíceis, mas não podemos esperar que esse período sombrio acabe sem fazer nada, pois não sabemos quando isso vai acontecer. Para tanto, devemos continuar lutando e trabalhando em benefício desses e de outros projetos que temos em mente”, explica Francisco Apurinã.
Os próximos passos incluem promover cursos, formações continuadas, consultorias na implementação das políticas públicas e indigenistas como forma de garantir direitos e proteger esses povos. “Nosso principal objetivo é a proteção territorial e ambiental de nossos territórios e das vidas que neles habitam, sejam humanos ou não-humanos”, complementa o vice-presidente.
Enfretamento da Covid-19
A pandemia da Covid-19 vitimou um dos anciãos do povo Apurinã mas, por ora, a situação nas aldeias está mais controlada. A comunidade vive da agricultura de subsistência, do extrativismo da castanha-do-Brasil, da produção e comercialização de artesanatos, da caça e da pesca.
Mas as famílias Apurinã e Jamamadi passaram por muitas dificuldades.
“Infelizmente alguns indígenas foram contaminados, momento em que perdemos o ancião Moacir Jamamadi, que lutou corajosamente para impedir a exploração ilegal dos recursos naturais. Isso nos instiga a defender os nossos territórios dos invasores que trazem, juntamente com suas práticas ilícitas, o vírus para nossas aldeias”, nos conta Francisco.
As famílias que vivem nas aldeias das Terras Indígenas Lourdes/Cajueiro e Apurinã do Valparaíso mantêm o isolamento social recomendado pelas autoridades sanitárias por conta da pandemia. Esse isolamento, no entanto, também impede a chegada da assistência do poder público às famílias. Parte dos recursos doados pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos foi usado para esse enfrentamento às consequências da pandemia.
“Estamos distribuindo cestas, materiais de higiene pessoal e de limpeza das casas para evitar a contaminação. Também estamos trabalhando com a conscientização para que as famílias permaneçam nas aldeias e não procurem a cidade. Concomitantemente utilizamos nossa medicina tradicional para ajudar no combate da Covid-19, e assim, estamos conseguindo nos preservar. Esse apoio do Fundo Brasil foi muito bom para o nosso povo”.
Airuka Apurinã mora em uma casa com seis pessoas na aldeia. Ele relata os desafios enfrentados para sobreviver na floresta.
“Nós vivemos uma vida difícil de trabalhar na mata, quebrar castanha, plantar milho e arroz na roça. A inundação veio e o legume que nós plantamos, a água levou embora. Tudo isso nós perdemos. Quando não é a água é o fogo que leva tudo. O Instituto ajudou muito com os alimentos, porque a gente não tinha nada para comer”, relata Airuka.
Sobre o Apoio Emergencial – SOS Amazônia
A linha de apoio SOS Amazônia é um fundo de resposta rápida que o Fundo Brasil destina a situações de emergência vividas por organizações indígenas na Amazônia Legal brasileira.
Para viabilizar este trabalho, o Fundo Brasil conta com a parceria da Coordenação das Organizações da Amazônia Indígena Brasileira (COIAB). O fundo emergencial conta com apoios de Global Wildlife Conservation (GWC), No Peace Without Justice, Nia Tero e Instituto Galo da Manhã.
O SOS Amazônia pode apoiar iniciativas que visam proteger áreas ameaçadas pelo fogo, por desmatamento e pela atuação de garimpeiros, madeireiros e pescadores; que busquem assegurar a proteção de terras indígenas onde vivem povos isolados sob ameaça iminente; voltadas a garantir a segurança de pessoas e organizações indígenas ameaçadas e vítimas de violência.
Podem ser solicitados recursos entre R$ 10 mil e R$ 50 mil por pedido.
Considerando o contexto atual da pandemia de Covid-19 na Amazônia Brasileira e a emergência para combate e mitigação de seus efeitos sobre os povos e comunidades indígenas, o apoio também foi destinado a ajuda humanitária, garantindo apoios básicos e emergenciais, como alimentação, higiene, limpeza, acesso a água, entre outros.
Segundo os representantes do Instituto Pupykary, cerca de 400 pessoas foram beneficiadas pelo apoio.