No ano de 2011, momentos antes de ser algemada, Iza Negratcha começou a sentir as primeiras contrações. Nem o trabalho de parto, no chão do hospital, impediu os agentes prisionais armados de a vigiarem enquanto seu filho vinha ao mundo. “O cárcere me fez entender o que é ser uma mulher preta. Mas antes de enxergar isso, eu me culpei por tudo de ruim que faziam comigo dentro da prisão”, conta, 11 anos depois.
Ainda quando estava dentro do cárcere, Iza se deparou com uma leitura específica e começou a entender que o que enfrentara na prisão infringia muitas leis. “Eles me colocaram para trabalhar dentro de uma biblioteca de lá. Foi ali que eu tive acesso ao Código Penal. Através dele, fui me orientando e, depois, passei a orientar as outras meninas também. Eu passei a entender que nós tínhamos direitos”.
Por conta da experiência na prisão, hoje, com 38 anos, Iza é graduanda em Direito e articuladora da Frente Sergipana pelo Desencarceramento. “Eu digo que me tornei advogada lá dentro mesmo. Usei o estudo como arma contra o sistema”.
Para incentivar outras mulheres e famílias a seguirem lutando pelos direitos e pela vida de quem está no cárcere, Iza Negratcha foi uma das participantes do Formação Antiproibicionista para Egressos e Familiares de Pessoas Privadas da Liberdade, que ocorreu no Casarão da Diversidade, que ocorreu no dia 29 de abril, no Pelourinho, em Salvador.
O evento, promovido pela Frente Estadual pelo Desencarceramento da Bahia, em conjunto com o Coletivo de Familiares de Pessoas Privadas da Liberdade, teve apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos por meio do edital Enfrentando o Racismo a partir da Base 2022.
A formação teve como foco a articulação, a interiorização e o fortalecimento de mulheres, que estão na ponta da luta pelo desencarceramento.
“Quando a gente está na guerra, atuando, não percebe que também está se organizando. Esse é o dia de a gente refletir enquanto familiar, enquanto mulheres e enquanto potência para que nossos maridos, filhos e as mulheres, que estão em cárcere, não estejam sozinhos nessa”, disse Elaine Paixão, articuladora da Frente pelo Desencarceramento da Bahia. “Quem entra lá passa por torturas tão grandes, que acredita que não tem mais direitos. A pessoa acha que aquilo que está acontecendo com ela é natural, mas não é. Por isso, estamos aqui hoje. Somente uma rede, com muitas mãos, é capaz de criar a contracorrente que a gente precisa para sobreviver”.
Resistência de familiares encarcerados
O encontro discutiu os princípios da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, as torturas sofridas por familiares durante a visitação ao sistema prisional e como o encarceramento no Brasil contribui para a perpetuação do racismo.
Para os debates e reflexões, a formação também trouxe a participação de apoiadores da luta, organizações parceiras, ativistas de direitos humanos e colaboradores interessados na causa, vindos de outras cidades da Bahia.
As mulheres organizaram esse e outros encontros para resistir à prisão dos familiares que, segundo elas, também causa o aprisionamento de toda a família. Vestidas com a camiseta “Ser família não é crime”, elas trouxeram testemunhos de situações enfrentadas nas visitações ou na sociedade, por terem parentes no sistema prisional.
“Pagamos um preço muito alto por sermos familiares de preso. As torturas e as punições que os nossos familiares presos enfrentam se estendem a nós, aqui fora. Nos humilham nas visitas, a sociedade nos condena e julga da mesma forma que a quem foi preso, sem entender o que é o sistema prisional de verdade”, enfatizou a ativista Iza Negratcha.
A revista íntima ainda é uma realidade nos presídios brasileiros. Mesmo com legislações que proíbem explicitamente a prática e com a instalação de escâneres corporais. Semana a semana, as pessoas que visitam um familiar encarcerado, em sua maioria mulheres e crianças, são revistadas nuas, passam por procedimentos abusivos e até castigo, por meio da revista vexatória.
“Dependendo do agente de plantão, sentimos como a revista é diferente e discriminatória. Eu já vi esposa jogando um bolo inteiro e outras comidas no lixo, feitas com todo o carinho, porque implicaram com ela. Por isso precisamos entender quais normas constitucionais, leis, tratados internacionais, o sistema prisional viola. Para que eles saibam que não estão lidando com desinformados. E, quanto mais pessoas souberam disso, maior será a nossa rede de luta e de apoio”, avalia a ativista.
Luta pelo desencarceramento
O Brasil abriga a terceira maior população carcerária do planeta, com cerca de 700 mil presos, ficando atrás apenas de EUA e China. Desse total, 67% são negros. Segundo Elaine, para entender as consequências do cárcere na vida das famílias de pessoas presas é necessário compreender o caráter punitivo do sistema prisional, que reflete na vida de pessoas que estão do lado de fora dos muros do presídio.
“O sistema prisional representa um modelo punitivista que na prática não funciona, seja por não cumprir seu papel fundamental, seja por não conseguir alcançar a ressocialização. Mesmo que você saia do cárcere, você continua preso pela sociedade”.
Por conta de todos os abusos, violências e o racismo presentes no sistema, para os movimentos da luta anticárcere é preciso colocar um fim em todos os espaços que aprisionam seres humanos, colocando um fim nas prisões.
“A nossa luta é coletiva pelo desencarceramento porque toda prisão é ilegal. Nenhuma prisão deveria existir, porque todas são espaços de tortura. A cadeia só serve para violentar corpos negros, tanto dos presos como dos seus familiares. Para sair vivo daquele lugar é um esforço surreal. Por isso, quem sai de lá chamamos de sobrevivente”, disse Iza Negratcha.
A Frente na luta pelo fim das prisões
A Frente Estadual pelo Desencarceramento da Bahia surgiu no ano de 2019, a partir da união e articulação de familiares de pessoas presas, sobreviventes do cárcere e outros atores sociais. Tem como objetivo o enfrentamento ao tratamento cruel e degradante e à tortura cometida contra as pessoas encarceradas. Também atua em advocacy e litigância estratégica.
“Lutamos pelo abolicionismo penal. Nos reunimos, enquanto familiares que visitam e, também, sobreviventes do cárcere. Buscamos fortalecer a formação de redes pela defesa dos direitos humanos para ampliar o debate público sobre o desencarceramento, o fim da violência do Estado e fomentar a construção de políticas públicas desencarceradoras”, descreve Elaine Paixão.
A Frente é apoiada no edital Enfrentando o Racismo a partir da Base 2022, iniciativa do Fundo Brasil de Direitos Humanos para grupos e coletivos populares antirracistas liderados por pessoas negras. O apoio é de natureza flexível, o que significa que pode ser usado como o grupo selecionado considerar adequado para garantir a sustentabilidade de suas atividades de promoção e de defesa de direitos humanos, dentro da pauta do enfrentamento ao racismo.
“Esse apoio que a gente recebeu do Fundo Brasil foi extraordinário, porque a gente, enquanto Frente, não recebe recurso nenhum. Foi essencial para nos mobilizar em diferentes lugares do Nordeste, para encontrar os familiares na frente dos presídios e conversar sobre os direitos. A gente agradece ao Fundo Brasil de Direitos Humanos por entender, que é necessário pautar o encarceramento em massa no Brasil”, finalizou Elaine.