Filha de uma trabalhadora doméstica, Glória Rejane da Silva Santos dormiu várias noites com fome na infância porque sua mãe não recebia o salário na data em que tinha direito. Também trabalhadora doméstica, desde 2009 Glória é uma líder da categoria e atua diariamente na defesa dos direitos da categoria profissional.
O Fundo Brasil apoia o Sindicato das Trabalhadoras e Trabalhadores Domésticos de João Pessoa e Região, na Paraíba, por meio do projeto “Trabalhadoras Domésticas: fortalecendo a ação sindical e enfrentando a violência institucional e a exploração no trabalho”.
Glória conta uma parte de sua trajetória e fala sobre a luta pelos direitos das trabalhadoras domésticas no décimo primeiro depoimento da série #DefensorXs.
Confira:
Sou paraibana. Tenho 60 anos.
Nosso Sindicato das Trabalhadoras Domésticas da Paraíba foi criado em 2009. Nos juntamos – eram 15 mulheres nessa batalha para criar um sindicato em João Pessoa. Porque não tinha nenhum instrumento de defesa dessa categoria.
Estou presidente desde lá até agora. E a luta é muito dura. Porque a gente tem que lidar com os patrões, eles não permitem que possamos trabalhar oito horas diárias, 44 semanais.
Eles ficam assim… que sempre tiveram a trabalhadora em casa para servir o jantar, até o último horário, nove, dez horas da noite. Quando eles deixam que elas fiquem na casa, a gente cobra hora extra.
Então a gente tem uma luta muito forte, nessa frente. Não é fácil.
Vim de uma família muito pobre. Muito, muito mesmo. Minha mãe era doméstica e não tinha como estudar. Somos quatro, comigo. Meu pai falava assim: a que nasceu primeiro vai para a escola. Quando ela aprender ler e escrever, vai a segunda. A segunda era eu, ficava esperando que chegasse o meu momento.
Fui na escola eu já devia ter uns nove, dez anos.
Na escola eu sofri muito, porque não tinha a fardinha de estudar. Eu não tinha. Tinha só um vestido. Todo dia ele tinha que ser lavado, passado. Era um ferro que tinha brasa dentro para enxugar.
As meninas falavam, os outros puxavam, rasgavam, hoje seria bullying tudo o que sofri. Mas eu gostava muito de estudar. Mas depois, não aguentando a situação, eu abandonei.
Estudei até a quinta série, acho que hoje é sexto ano.
Mas no sindicato, com essa frente muito difícil, quando eu vi que não tinha o domínio, não tinha o saber, voltei a estudar e fiz o Enem. Porque eu quero fazer a faculdade de Serviço Social. Dia 9 está até marcada uma prova do vestibular. Então fiquei muito feliz por dominar essa frente. Porque quando cheguei achava que era só para conversar com uma trabalhadora. Mas não. Vem o advogado, vem o patrão, vem o contador. Mas eu não desisti. Eu disse: volto para a sala de aula!
Fui candidata a vereadora. Certamente não iria ganhar, mas queria dizer que a mulher pobre, negra, trabalhadora doméstica, também pode. Foi mais por isso.
Logo cedo, não fui doméstica. Fiz até outros trabalhos. Eu tinha muito medo de ser doméstica porque acompanhei, quando criança, todo o sofrimento de minha mãe. Porque era ainda mais difícil. Ela falava assim: se eu receber o dinheiro hoje, vocês vão comer. Se não, só quando decidirem me pagar. Então a gente tinha que dormir só tomando água.
Então essa foi uma frente que agarrei com muita força por conta da minha história. Eu queria fazer essa defesa.
Cheguei em 2009 e em 2013 veio a PEC das domésticas. Foi um impacto forte que sofremos no sindicato. Era muito repórter, toda uma mídia.
O direito que veio de imediato foi a definição da carga horária, de oito horas diárias e 44 semanais. Aí aliviou um bocado. As trabalhadoras estavam muito cansadas de trabalhar até tarde da noite. Em outubro de 2015 vieram outros direitos, que foi o FGTS, o salário-família, o seguro-desemprego e outros. Mas ainda não igualou. Ainda não ficamos iguais a outro trabalhador. Mas mudou muito a vida. A doméstica já tinha direito a receber o FGTS e três parcelas do seguro-desemprego.
E aí veio esse retrocesso tão rápido. Nem deu tempo de estudar a PEC, já acontece uma nova lei. Essa reforma trabalhista, que lá a gente não fala reforma, fala deforma trabalhista. Que hoje não vai ser mais só uma questão da trabalhadora doméstica, mas de todo trabalhador.
Nesse momento eles igualam nós a outros – porque é uma retirada de direitos.
E a gente sabe que com isso se trava uma luta bem maior para conscientizar a trabalhadora que ela não deve fazer acordos na casa, ela não deve assinar nada lá. Porque o que ela assinar é o patrão que vai dar as ordens, o sindicato perde a força que tem por brigar por direitos.
Vai ser muito difícil, sabemos disso, porque a trabalhadora, em sua grande maioria, não sabe ler. Então ela nunca vai saber o que está assinando.
E nós estamos agora com o Fundo Brasil – esse projeto chegou na hora certa. O edital a gente escreveu com ajuda da Cunhã, movimento feminista que é nosso parceiro lá, e fomos aprovadas. Foi uma alegria imensa.
Fizemos oficinas sobre racismo, depois sobre a saúde da mulher e sobre trabalho doméstico.
É um trabalho muito lento, a mulher trabalhadora carrega um peso muito grande, que é o de não saber ler. E a submissão – ela tem muito medo do patrão. Tudo o que ele falar, ela fica com tanto medo que vai cumprir.
O trabalho doméstico significa um trabalho muito importante. Porque, para que outra mulher, que estudou, que buscou outra formação, que tem outra profissão, possa trabalhar, é necessário que nós fiquemos na casa, cuidando dos filhos, da comida, de tudo.
Mas mesmo assim é muito desvalorizado, invisibilizado.
Toda essa reforma de agora foi feita para patrão. Não tem nada beneficiando nós. É tudo para patrão. Eles que gostam de ser servidos até tarde, vão aproveitar.
Mas a gente sabe que nossa luta não vai parar.
Nossa luta continua: conscientizando, falando do trabalho.
A comunicação de nossas campanhas causa bom efeito para as domésticas. Fazemos as campanhas onde elas estão: nos pontos de ônibus, no trem, nos bairros e nas escolas.
Mesmo com essa retirada de direitos, a conscientização está em primeiro lugar.
Entrevista concedida a Cristina Camargo e Simone Nascimento.