Qualquer pessoa, ao tomar uma atitude contra algum tipo de discriminação, em defesa do meio ambiente ou para reivindicar respeito, está defendendo os direitos humanos. Com essa ideia, simples e ao mesmo tempo poderosa, a cantora e empresária Preta Gil começou sua participação no debate “Juntas e Juntos Pelos Direitos Humanos”, promovido pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos na terça-feira, 4 de agosto.
Este foi o primeiro de uma série de quatro encontros virtuais que, até 16 de setembro, reúne ativistas, artistas e comunicadores para dialogar sobre temas dos direitos humanos. O objetivo é incentivar conversas inclusivas e plurais sobre quais são os direitos fundamentais da democracia e por que é essencial fortalecê-los. Além de Preta Gil, participaram desta primeira roda a socióloga Edna Jatobá, que coordena o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), de Recife, e a advogada Allyne Andrade, superintendente adjunta do Fundo Brasil. As três foram entrevistadas pelo historiador e professor Luiz Antônio Simas.
Afinal, o que são os direitos humanos? Para quem? Por que essa ideia encontra tanta resistência na sociedade brasileira? Estas foram algumas da reflexões que motivaram a conversa entre as participantes.
“A gente precisa engajar a sociedade e fazer com que cada ser humano compreenda que quando algo de errado te incomoda e você busca reparar de alguma forma, você está lutando pelos direitos humanos”, disse Preta Gil. Refletindo sobre sua trajetória de vida e carreira, a cantora e empresária afirmou não se considerar uma especialista em direitos humanos, mas que foi se entendendo aos poucos como defensora da igualdade e do respeito.
O próximo debate, com o tema “Juntas e Juntos Pelo Enfrentamento ao Racismo”, ocorrerá no dia 19 de agosto, quarta-feira, às 19h, com a atriz Zezé Motta, o professor e ativista Douglas Belchior, da rede de educação popular Uneafro e da Coalizão Negra por Direitos e, mais uma vez, a advogada Allyne Andrade, superintendente adjunta do Fundo Brasil. Os três serão entrevistados pela jornalista da Globonews Flávia Oliveira.
Um assunto para todas e todos
Marcada pelos pontos de vista e vivências diversas das participantes, a roda de conversa comprovou que direitos humanos são um assunto que deveria interessar a toda a sociedade brasileira.
O entrevistador Luiz Antônio Simas abriu a noite lembrando que “direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição”. “Tem que desmistificar, fica parecendo que só estudiosos podem falar e praticar.”
Para Preta Gil, um caminho para a construção de uma sociedade mais democrática é o fortalecimento coletivo. “Não é preciso estar no poder, mas sim criar pontes, diálogos”, disse.
Simas pontuou que Preta é um exemplo de que a postura favorável aos direitos humanos não é apenas de reação a violações. Para ele, Preta é um exemplo de postura propositiva, que inventa novas possibilidades de existência e de resistência.
“Como diz o meu pai, minhas bandeiras nasceram fincadas. Eu já sou uma bandeira”, brincou a cantora, que sempre usou sua arte para falar não apenas de si, mas também dos outros. “Ao defender os meus direitos como mulher preta, gorda, bissexual, eu percebi que estava defendendo um coletivo.” Para a artista, o caminho a seguir é transformar a revolta diante das injustiças em ações efetivas.
Ser antirracista e escutar os territórios
Especialista em políticas e gestão de segurança pública, a socióloga Edna Jatobá destacou que a democracia plena significa garantir os direitos básicos de todas e todos, de fato, como uma escolha diária. “É preciso reescrever a prática dos direitos humanos diariamente, porque a história que foi escrita não se ajusta no tempo e no espaço em que vivemos hoje. Se a nossa luta não for sobretudo antirracista, ela não é uma luta de direitos humanos em sua plenitude”, destacou.
Allyne Andrade, do Fundo Brasil, concordou: “Direitos humanos são universais, mas a gente percebe, na escuta atenta dos territórios, que existem populações mais vulneráveis às violações”. Ela informou que a atuação do Fundo Brasil consiste justamente em apoiar a defesa de direitos a partir dos conhecimentos e das estratégias dos grupos de todo o país que atuam em pautas como enfrentamento ao racismo e às violências contra mulheres, povos indígenas e pessoas LGBTI+, entre outras.
Simas lembrou que o Brasil do século 21 ainda é marcado pela colonialidade, tendo séculos de escravidão e genocídio. “É um projeto medonho”, disse o professor.
Edna Jatobá lembrou que defensoras e defensores de direitos humanos nunca foram bem vistos no Brasil e, agora, estão sob o risco de serem criminalizados.
Mais humanos que os outros
A atriz Gabriela Loran, mulher transexual, enviou uma pergunta em vídeo. “Eu costumo dizer que alguns humanos são humanizados e outros não. A comunidade trans ainda não é humanizada. Por que o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas trans no mundo inteiro?”
Ao responder à pergunta da atriz, Allyne Andrade avaliou que parte da população brasileira prefere ignorar a questão, e que as conquistas para as pessoas LGBTI+ são fruto de muito trabalho da sociedade civil organizada. Allyne trouxe como exemplo o Projeto Sinergia, do Grupo Dignidade, do Paraná, que participou dos esforços jurídicos para que pessoas trans possam mudar seu nome e gênero nos documentos oficiais sem necessidade de ação judicial, nem de cirurgias de redesignação sexual. Essa possibilidade foi aprovada no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018. O Fundo Brasil apoiou o Projeto Sinergia.
Allyne destacou ainda a importância de que o país crie oportunidades para que pessoas trans atuem em todas as esferas do conhecimento e da vida pública. “Precisamos de advogados defendendo as pessoas trans mas, mais que isso, precisamos que pessoas trans possam se tornar advogados e advogadas.”
Edna Jatobá também falou sobre a necessidade de incluir as pessoas trans não só como público-alvo de ações planejadas, mas como agentes desses planejamentos nas organizações da sociedade civil. E lembrou, ainda, que o sistema prisional aprofunda a violência contra pessoas trans no momento em que, por exemplo, uma mulher trans ingressa no sistema e é alocada em um presídio masculino. Por fim, essa violência continua mesmo após a morte de uma pessoa transexual – quando ela é sepultada com o seu nome de batismo, não o seu nome social.
Preta Gil pontuou que pessoas transexuais são as últimas na pirâmide social a terem direitos e a serem incentivadas a lutar por esses direitos. “Entendo que essa luta se dá em diversas camadas; na educação, no direito civil, na sociedade em si. E você vê que há uma disparidade entre elas”, avaliou a artista, alegando também que, ao mesmo tempo em que se percebe a evolução, se percebe o aumento da violência contra essas pessoas.
Como se engajar
Simas pediu às participantes reflexões sobre o que as pessoas podem fazer para se engajar na busca por um país mais justo.
Para Preta Gil, esse processo começa com uma auto-avaliação e o reconhecimento dos privilégios de cada um. “É preciso defender os direitos de todas e todos em cada pequeno gesto. Denunciar discrminações, não se omitir. Não adianta, por exemplo, dizer que você não é racista. É preciso realmente não ser racista”, disse a artista.
Edna Jatobá lembrou que é fundamental, nesse processo, apoiar a atuação das organizações da sociedade civil. “Se não fosse a sociedade civil, não teríamos uma resposta eficiente para a falta de acesso à água durante o período de seca. Não teríamos aqui um programa de proteção às pessoas que decidem denunciar crimes.”
Ela acrescentou ainda: “Discutir segurança, por exemplo, é muito desafiador, mas a sociedade civil tem mostrado que é possível. Depois de insistir muito, a gente conseguiu nos estados, a partir do impulsionamento de fóruns populares de segurança pública, que as organizações de bairro, que as ligas de dominó, os terreiros de candomblé, as igrejas evangélicas, as pessoas na suas casas pudessem discutir segurança pública. Fomos nós que fizemos isso, não veio de cima para baixo. Há muito a fazer ainda, mas a gente pode dizer, hoje, que a Região Nordeste tem um projeto popular de segurança pública. E a gente fala isso com esperança. Defender direitos humanos é isso, uma luta contínua que atravessa gerações. E a gente tem de entender como cada um de nós participa dessa luta, que pode começar na mudança de opinião.”
Edna Jatobá afirmou ainda que a atuação do Fundo Brasil tem a característica específica de valorizar o trabalho da sociedade civil sem impor fórmulas prontas. “É um parceiro que deixa a gente trabalhar”, disse.
“A defesa dos direitos humanos é uma crença radical e profunda na potencialidade do ser humano. É a gente acreditar que de fato não podemos perder ninguém, nenhuma pessoa a menos por conta de desigualdade, de violações, de LGBTI+fobia, de racismo. É uma crença de que podemos ser mais, podemos ser melhores e podemos avançar”, concluiu Allyne Andrade.
Assista à íntegra do debate “Juntas e Juntos Pelos Direitos Humanos”.