
Organizações de todo país se reúnem em São Paulo, durante Encontro de Projetos do Fundo Brasil, para debater “o futuro que queremos construir”. Foto: Natalia Paula/ Acervo Fundo Brasil
Pensar em futuros possíveis. Analisar sobre como cada organização pode impactar a realidade e contribuir para a construção de um país mais justo, por meio da defesa dos direitos humanos. Foi com esse olhar que representantes de 140 projetos apoiados pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos se reuniram em mais um Encontro de Projetos, em São Paulo, imersos em reflexões e trocas sobre o impacto de suas atuações.
Entre os dias 13 e 14, 20 e 21 de março, a fundação abriu espaço para diálogos e conexões, em um encontro que já se tornou tradição entre as organizações apoiadas.

Ana Valéria Araújo, diretora executiva do Fundo Brasil, fala aos presentes na abertura do Encontro de Projetos. Foto: Natalia Paula/Acervo Fundo Brasil
A ação, promovida anualmente, tem o objetivo de criar um espaço de aprendizado mútuo, permitindo que os participantes compartilhem desafios, conquistas e boas práticas, além de estreitar a colaboração entre territórios que enfrentam desafios semelhantes.
Para o Fundo Brasil, esta também é a oportunidade de interagir ainda mais com quem diariamente defende os direitos humanos no país e aprimorar estratégias institucionais de atuação.
“Esse encontro nos ajuda a garantir que o apoio que oferecemos seja ainda mais eficaz, porque podemos ouvir diretamente quem está executando os projetos e, assim, ajustar nossas estratégias e ações para apoiar da melhor forma possível”, explicou Ana Valéria Araújo, diretora executiva do Fundo Brasil. “O encontro também facilita a criação de redes de colaboração entre as organizações, o que potencializa o impacto de cada ação”.
Para garantir mais conforto e facilitar o diálogo entre os participantes, o evento foi distribuído em duas semanas, reunindo organizações apoiadas por seis editais. Na primeira semana, a fundação recebeu representantes de projetos apoiados pelos editais Enfrentando o Racismo a partir da base, Incidência Popular em Segurança Pública, Porta de Saída 2024: Direitos e Cidadania das Pessoas Egressas do Sistema Prisional.
Na segunda semana, foi a vez de organizações dos editais Promoção e Defesa de Direitos Humanos na Bacia do Rio Doce, Edital Geral de 2024 Vozes por Direitos e Justiça: fortalecendo a autonomia e a ação da sociedade civil e o edital do Raízes, Povos Indígenas Lutando por Justiça Climática.
Vozes pelo Futuro: Liberdade, Justiça e Igualdade

Em bate-papo, as grupos apoiados pelo Fundo Brasil falaram de desafios e descreveram como trabalham para construir um futuro melhor. Foto: Natalia Paula/Acervo Fundo Brasil
No primeiro encontro, o debate sobre o futuro que as organizações trabalham para construir foi marcado por temas como resistência, liberdade, inclusão e o fim das prisões.
Cada fala trouxe uma visão única sobre as realidades e desafios enfrentados pelas comunidades, mas todas convergiram para a mesma causa: a criação de um futuro mais justo e inclusivo para todos, com liberdade e igualdade.
Lilian Pires, do Coletivo Iniciativa do Baobá, de São Paulo, relatou que para um futuro próximo, espera que o racismo e seus desdobramentos, não façam mais parte de sua rotina. “O que a gente espera no futuro é poder sair de casa sem medo das violências e opressões que enfrentamos. Espero que possamos nos reunir para sorrir, falar de conquistas e não mais de dores”.
Bárbara Freitas, da Assessoria Popular Maria Felipa, de Belo Horizonte/MG, que trabalha por justiça integral para mulheres, espera que o direito de existir e de recomeçar seja uma realidade. “O futuro que eu espero é um mundo sem prisões, que sejamos todos livres”, disse, enfatizando a importância de um futuro sem o sistema carcerário como instrumento de exclusão e opressão.
Nos últimos anos, os números de violência contra a juventude negra no Brasil escancaram o que muitos já sabem na pele: o direito à vida não é garantido para todos da mesma forma. Segundo o Atlas da Violência, os jovens negros representam mais de 75% das vítimas de homicídio no país, uma estatística que revela não apenas um padrão, mas um projeto de exclusão.
Em cidades como Cabo de Santo Agostinho/PE, esse cenário se agrava. Por isso o Fórum de Juventude do Cabo – FOJUCA trabalha para virar esse jogo, colocando a juventude negra no centro da criação de políticas públicas. “Há dois anos, nós vimos que Cabo de Santo Agostinho foi considerado o município onde o jovem negro estava mais vulnerável em todo o Brasil. A partir disso, criamos o movimento para pautar os direitos de os jovens viverem. Queremos no amanhã ser uma referência na criação de políticas públicas para a juventude”, disse durante o encontro Glaubberty Rusman, do FOJUCA.
Mãe Nonata de Oxum trouxe, em sua fala, uma reflexão aprofundada sobre a luta contra o racismo religioso e a importância da resistência: “O direito humano à vida é primordial. Mesmo dentro das nossas lutas, não podemos perder a nossa alegria, o prazer de viver nossa resistência e insistir em mudar essa história. Falar de futuro é falar de esperança. Precisamos ter esperança para continuar nos mantendo firmes”, concluiu a líder religiosa, que representa o Instituto Cultural Folclórico Religioso Beneficente Nossa Senhora da Vitória, de São Luís/MA.
Para tantas dores e lutas cotidianas, Edna Flores, da Associação Água Morena de Redução de Danos, de Campo Grande/MS, viu no encontro de projetos um momento de respiro e de aconchego. “Quero, antes de tudo, agradecer ao Fundo Brasil, porque isso que estamos vivendo aqui é acolhimento. Esse momento é muito importante para todos nós. Focamos no cuidado e no fortalecimento de pessoas privadas de liberdade, um trabalho pesado. O futuro próximo já se inicia aqui, com essa oportunidade que o Fundo nos deu para o fortalecimento em rede e troca de experiências”.
Ao final do bate-papo, diante de tantas reflexões importantes, Mafoane Odara, presidente do Conselho Administrativo do Fundo Brasil, reforçou a necessidade essencial para a luta, que é cuidar de quem cuida. “O ativismo pode ser exaustivo, por isso, o cuidado deve ser uma prioridade nas estratégias de resistência. Precisamos construir redes de apoio e garantir que a luta pelos direitos não comprometa a vida de quem está na linha de frente, assim como a dignidade e o bem-estar daqueles que conduzem esse processo. É fundamental colocar a esperança em movimento e continuar acreditando na importância do que fazemos. Mas nos fortalecendo em rede, como fazemos hoje, aqui.”
Caminhos para um futuro possível: Reflexões e desafios
Na segunda semana do Encontro de Projetos, os debates sobre os caminhos para o futuro que as organizações trabalham para construir foram realizados em salas separadas, com os grupos divididos, conforme as temáticas de atuação. Os diálogos foram conduzidos por integrantes do Conselho de Administração do Fundo Brasil.
Veriano Terto, que também é presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, compartilhou a história da luta pelos direitos das pessoas que vivem com HIV/AIDS, abordando também os desafios atuais enfrentados por esse movimento e tantos outros que defendem esses direitos.
Ele incentivou as organizações a refletirem sobre o progresso da luta pelos direitos fundamentais e enfatizou que, “embora as lutas já estejam em andamento, é essencial que nossos grupos e organizações continuem caminhando na busca pela garantia desses direitos”. Para ele, é crucial que as histórias dos movimentos sociais não sejam apagadas. “É preciso preservar a história, para que o propósito de um futuro melhor siga em frente”.
Por fim, Terto afirmou que os direitos humanos são e devem ser um projeto político essencial para que possamos enfrentar os dilemas da vida atual e continuar a construir um futuro possível, mesmo diante das adversidades.
Gersem Baniwa, antropólogo e professor indígena, conduziu a conversa com grupos indígenas. Em um país onde os povos indígenas enfrentam ameaças constantes ao seu território e cultura, o professor destacou o quanto a natureza tem ensinado a humanidade a ser resistência. “A palavra final não é do ser humano, é da natureza. Nós dependemos dela, ela é a substância, é ela que tem o poder e tem sobrevivido a todo tipo de violência”, afirmou o professor.
Com dados alarmantes de desmatamento e violência contra os povos indígenas, como o aumento de 137% nos assassinatos de líderes indígenas em 2023, Gersem Baniwa ressaltou que a luta pela preservação da natureza e pelos direitos indígenas nunca foi tão urgente. “Não basta pensar, planejar e projetar, é preciso construir. Construir de forma artesanal o futuro que desejamos. Para nos proteger precisamos construir alianças, como fizemos para conquistar direitos históricos”.
Mafoane Odara, mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo abordou a necessidade de repensar as estratégias de comunicação para garantir que os direitos humanos sejam compreendidos como uma preocupação de todos. “Precisamos entender que nossa comunicação coletiva é mais forte. Estamos aqui, com o mundo acontecendo ao nosso redor: conflitos, lutas. Apesar dos desafios, a realidade não é a mesma de antes. Muitos de nós morreram para que hoje estivéssemos aqui, pensando no futuro. Já avançamos e seguiremos a diante”, refletiu.
Ela enfatizou a necessidade de alcançar aqueles que, inicialmente, se mostram indiferentes ou relutantes em entender a luta por direitos. “A gente não pode renunciar àquilo que é inegociável, que é a nossa causa, a nossa pauta e a busca por uma vida digna. Então, a gente precisa saber chegar em quem não quer nos ouvir, trazendo pontos em comum da vida coletiva, daquilo que nos conecta para que as pessoas entendam que defendemos bem de todos”.

Veriano Terto, Gersem Baniwa e Mafoane Odara, integrantes do Conselho Administrativo do Fundo Brasil durante debates no Encontro de Projetos do Fundo Brasil. Foto: Natalia Paula/Acervo Fundo Brasil
Fernanda Ribeiro Almeida, representante da Agência Nacional Ciganas, de Belo Horizonte/MG, participou pela primeira vez do encontro de projetos e ressaltou a relevância do evento para fortalecer aqueles que estão na ponta todos os dias, defendendo direitos humanos. “Nossa luta não é por pautas isoladas. Lutamos pelo bem de toda a humanidade, pois, ao transformar o mundo, a melhoria será para todos, não apenas para um grupo específico. Agradeço ao Fundo Brasil por proporcionar um encontro essencial para nos impulsionar ainda mais por meio dessas trocas”, afirmou.
Oficinas para sustentabilidade e futuro das ações

Oficina de Captação de Recursos, parte da programação do Encontro de Projetos do Fundo Brasil. Foto: Natalia Paulo/Acervo Fundo Brasil
As oficinas de formação encerraram a programação do evento, oferecendo ferramentas práticas e conhecimentos para aprimorar o desempenho das organizações nas diversas áreas da atuação social. As atividades também contribuem para o fortalecimento das capacidades técnicas e de gestão das instituições.
Durante o evento, todas as organizações participaram de workshops focados em captação de recursos, elaboração de projetos para inscrição em editais, comunicação estratégica para a defesa de direitos e incidência popular.
Ednalva Rita, veio do Quilombo Caiana de Crioulos, em Alagoa Grande, 130 km da capital paraibana, destacou a transformação que essa experiência trouxe para ela e sua comunidade, que enfrenta grandes desafios.
“A Rita, lá do Quilombo, que tem desafios para chegar na capital do estado, jamais imaginou que estaria um dia aqui, em São Paulo, com tanta gente potente. A partir de tudo o que ouvi aqui, de tudo o que vivenciei nestes dias, posso dizer que volto outra para o meu território e com ainda mais vontade, cheia de ideias, para colocar em prática, sobre como elaborar o meu projeto e comunicar para o mundo o que a gente faz no território”, comemorou a quilombola.
“Ao Fundo Brasil, eu só posso agradecer por nos dar esperança de saber que não estamos sozinhos e que podemos continuar lutando firmes por uma vida melhor para o nosso povo”.