
Foto: Airan Albino/Acervo Fundo Brasil
“Há 520 anos estávamos aqui. Não tinha plástico, não tinha poluição, mineração. E a gente sobreviveu, estamos aqui hoje. Então, que venha o que vier, a gente vai continuar vivendo. Não importa o que aconteça, continuaremos lutando e vivos”, expressou com emoção Genilda Maria Rodrigues, durante a formação do Raízes – Fundo de Justiça Climática para Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais.
As palavras de Genilda, da Associação de Mulheres Originárias da Terra Indígena de Apucaraninha – AMOTIA, no Paraná, ecoaram entre os 40 representantes de organizações indígenas e comunidades tradicionais reunidos em São Paulo no dia 19 de março, quarta-feira.
O encontro teve como objetivo fortalecer redes de resistência, compartilhar histórias de defesa dos territórios e promover a troca de saberes sobre formas sustentáveis de relação e preservação da natureza. A crise climática não afeta a todos de forma igual – pelo contrário, acentua desigualdades históricas e aprofunda processos de exclusão e injustiça, sobretudo para povos indígenas e comunidades tradicionais. Esses grupos, que estão entre os que menos contribuem para as mudanças bruscas do clima, são também os que mais sofrem seus impactos. Seus modos de vida contrastam diretamente com os modelos de desenvolvimento insustentáveis que agravam o problema e, ao mesmo tempo, oferecem respostas essenciais para o seu enfrentamento.
A formação reuniu grupos contemplados pelos editais Comunidades Tradicionais Lutando por Justiça Climática e Povos Indígenas Lutando por Justiça Climática, ambos parte da iniciativa do Raízes – Fundo de Justiça Climática para Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais, criado pelo Fundo Brasil, que reconhece e apoia aquelas e aqueles que estão na linha de frente da defesa e promoção dos direitos humanos, socioambientais e da justiça climática.
O Raízes destina recursos para iniciativas que protegem territórios, modos de vida e saberes ancestrais, promovendo autonomia e soberania das comunidades indígenas e tradicionais na luta por seus direitos.
Vivência sensorial e conexão com os territórios

Grupos, lideranças e coletivos participam de dinâmica, durante a formação. Foto: Mariana Rodrigues/Acervo Fundo Brasil
À frente das atividades da formação do Fundo Raízes, Thainá Mamede, assessora de projetos do Fundo Brasil e responsável pelo Raízes, e Andréia Coutinho Louback, jornalista, mestre em Relações Raciais e especialista em justiça climática, conduziram um dos momentos mais marcantes do encontro. Diretora do Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC), Andréia tem desempenhado um papel essencial na articulação de estratégias e no fortalecimento do debate sobre justiça climática, com a missão de ampliar o debate público e influenciar políticas públicas de justiça climática e equidade racial em diferentes níveis – local, regional ou nacional. “A luta é por futuros possíveis, com bem viver para todos os seres”, destacou.
A formação do Fundo Raízes começou com uma imersão sensorial profunda. Andréia realizou a dinâmica “Vozes do Rio e Memórias do Território”, convidando os participantes a resgatarem memórias afetivas de seus locais de origem, guiados por sons da natureza. Mais do que um exercício simbólico, a experiência reforçou a conexão com os territórios e trouxe à tona reflexões sobre os impactos das mudanças climáticas e a urgência da preservação ambiental, reafirmando o papel essencial dos povos tradicionais na luta por justiça climática.
Motivados pela atmosfera de conexão e pertencimento que tomava conta das primeiras atividades, os participantes, de forma espontânea, entoaram rezas e canções tradicionais, utilizadas historicamente em contextos de celebração, resistência e mobilização comunitária nos territórios.
“Eu fiquei muito emocionada com esse exercício, porque a gente pôde, aqui em São Paulo, reconectar com o nosso território, lá longe, e lembrar da força que carregamos há tanto tempo em nossos corpos. Antes de qualquer atividade, a gente fortalece a nossa alma e se prepara para as lutas diárias. A nossa natureza, o nosso território, é o que de mais poderoso e valioso temos”, disse Silvana Marumbo, da Organização Mulheres Artesãs Indígenas – MAI, em Atalaia do Norte/AM.
O olhar das mídias sobre comunidades tradicionais

Foto: Airan Albino/Acervo Fundo Brasil
Outra atividade da formação convidou os presentes a refletirem sobre como os territórios são retratados pela mídia tradicional e relatarem se suas realidades estão sendo representadas de forma justa.
Dentro do tema “Nos sentimos verdadeiramente representados ou invisibilizados pelas mídias?”, o consenso foi de que a forma como são retratados pela imprensa distorce suas lutas, criando uma narrativa de criminalização e invisibilidade. “Eles mostram de forma contrária o que dizemos. A mídia local diz que os povos indígenas são contra o desenvolvimento. Nunca fomos contra isso! O único crime que eu cometo no meu território é proteger a floresta”, disse Dioclécio Mendonça, do Fórum Intersetorial de Professores e Lideranças Mendonça, em João Câmara/RN.
Klesia Lima, Associação das Mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu, no interior do Piauí, também fez críticas sobre a forma como as comunidades tradicionais aparecem nos jornais locais e nacionais. “A gente quer lutar pela floresta de pé. O que eles dizem para a gente é que virá desenvolvimento para as comunidades indígenas.” Ela reafirmou que, quando os povos tradicionais se tornam notícia, é quase sempre para criminalizá-los “eles não reconhecem o papel fundamental que desempenhamos para a preservação ambiental e para a humanidade”.
Para mudar esse cenário, Karen Pataxó, da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo – Apoinme, chamou a atenção para a necessidade de fortalecer a comunicação entre as próprias comunidades. “Precisamos nos fortalecer e nos comunicar entre a gente, entendendo a importância de pautas importantes para nós”.
Já Débora Cissa, representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB, de Manaus/AM, destacou a importância do ativismo para a comunicação eficaz: “A gente tem que utilizar a nossa experiência no ativismo para comunicar.” Esses depoimentos reforçam a urgência de criar uma comunicação mais justa e autêntica para os povos tradicionais e indígenas, valorizando suas realidades e lutas.
Justiça Climática na visão de quem a defende

Participantes debatem sobre problemas e soluções para seus territórios. Foto: Mariana Rodrigues/Acervo Fundo Brasil
No painel “Justiça Climática para Povos e Comunidades Tradicionais”, os participantes refletiram sobre o significado da justiça climática a partir de suas realidades. “Nosso objetivo é aprofundar a compreensão sobre os impactos das violações de direitos humanos e da degradação ambiental nos direitos, territórios e modos de vida dos povos tradicionais”, explicou Thainá Mamede. “A justiça climática é multidimensional, englobando a defesa dos territórios, a justiça social, os direitos humanos e socioambientais, além da valorização dos modos de vida e saberes diversos. Mais que uma questão ambiental, é também reparação histórica, autonomia e garantia de direitos — sem essa perspectiva, qualquer solução será insuficiente e excludente”.
As falas das organizações refletem não apenas a urgência das questões ambientais, mas também a luta por direitos territoriais, culturais e pela preservação da vida em harmonia com a natureza.
Eroka Kambeba, da OKAS, em São Paulo de Olivença/AM, de um território onde os impactos ambientais são devastadores, ressaltou: “Lá nunca chega nada para nós. Por isso, eu agradeço ao Fundo Brasil por terem chegado até a gente, aonde ninguém vai para ajudar. A gente está sendo envenenado diariamente. Eles matam a gente não só no combate, com bala, mas aos poucos, com metais pesados nas águas, no ar, no solo”.
Ana Pataxo, do Coletivo Arewá, de Santa Cruz de Cabrália/BA, destacou que a justiça climática é, antes de tudo, “garantir os direitos dos povos indígenas para preservar seus territórios, reconhecendo o valor da reparação e do respeito pelas florestas.”
Aldeni Nunes, da Associação de Seringueiros, Produtores e Artesãos Kaxinawá de Nova Olinda, no Acre, ressaltou que a justiça climática “dá o direito de viver com dignidade, com direitos sociais iguais, e traz o fortalecimento do conhecimento da nossa ancestralidade”.
Para Maria Aliene, da Associação de Catadoras e Catadores de Mangaba, em Aracaju/SE, “a natureza é o nosso bem comum”. Justiça Climática é esperança. Justiça Climática é dizer que a natureza venceu”.
Plácido, da Associação Indígena Ipioca II, de Feira Grande/AL, destacou que justiça climática envolve um direito constitucional. “Ela abrange o bem-estar físico e mental, tanto dos seres humanos quanto da Mãe Terra. Agradecemos ao Fundo Brasil por nos apoiar nessa luta de preservação da vida”.
Na definição de Bárbara Souza, da Urihi Associação Yanomami, de Boa Vista/RR, acrescentou que a justiça climática está intimamente ligada à preservação das terras e florestas. “É sobrevivência de um povo que teve todos os seus direitos negados por séculos e continua resistindo”.
Para Leci Vieira, do Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa, no Rio Grande do Sul, justiça climática é respeitar o meio ambiente, lembrando que as vidas dessas comunidades estão intrinsecamente ligadas à questão ambiental. “Somos a natureza e a natureza somos nós”.
Geiza Francisca, do Coletivo Muvuca, em Santarém/PA, trouxe uma reflexão emocional sobre o impacto das mudanças climáticas em sua comunidade. “Justiça climática para nós é a reparação de uma saudade herdada. Crescemos escutando a história de uma terra sem males e sem maldições, que foi inundada pela barragem do Rio São Francisco. A justiça climática para nós é reparação e trazer de volta essa terra sem males e sem maldições. Ela está intimamente ligada à democracia e ao direito à vida, considerando tanto os seres humanos quanto os não-humanos”.
Sobre o Raízes

Foto: Mariana Rodrigues/Acervo Fundo Brasil
O Raízes – Fundo de Justiça Climática para Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais é uma iniciativa do Fundo Brasil de Direitos Humanos para apoiar de forma estratégica esses povos e comunidades em suas lutas por justiça climática e ambiental e por direitos humanos, na Amazônia e nos outros cinco biomas brasileiros: Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal.
O Raízes tem como premissa capilarizar recursos do financiamento climático para que cheguem à ponta, aos povos indígenas e comunidades tradicionais que se organizam para lutar por direitos territoriais e ambientais, por direitos humanos e pela vida no planeta.
Doamos os recursos de forma estruturada para propostas de fortalecimento institucional das organizações criadas e geridas por esses povos e comunidades, e para projetos de intervenção direta no território, a partir de suas experiências concretas. Também atuamos por meio de fundos para responder rapidamente a emergências, como a crescente violência contra ativistas e lideranças de comunidades tradicionais e povos indígenas e o agravamento de eventos climáticos extremos. Fazemos, ainda, doações para ações de mobilização, articulação e incidência.
Também fomentamos na sociedade brasileira o debate sobre o papel dos povos indígenas e das comunidades tradicionais na mitigação dos efeitos da crise climática e sobre a urgência de garantir seus direitos.
Para mais informações, visite a página do Raízes.