A ABV (Associação de Bem com a Vida) foi fundada em 2012 em Boa Vista (RR) com o objetivo de proporcionar o compartilhamento de experiências, a disseminação de informações e a melhoria da qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV/Aids, além de promover a prevenção das Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).
Uma tarefa nada fácil, como conta Ana Cristina Carvalho de Oliveira, a fundadora da ABV. A associação é apoiada pelo Fundo Brasil por meio do Projeto BURITIS – Buscando Unir Resistências, Informações, Trabalho, Ideias e Saúde na Tríplice Fronteira.
Ana Cristina fala sobre conquistas e desafios no décimo depoimento da série #DefensorXs, realizada pelo Fundo Brasil.
Confira:
Eu sou Cristina, que se descobriu HIV positiva há 20 anos. E levantei a bandeira primeiramente da luta contra a Aids. Que tem tudo a ver com direitos humanos. Só me dei conta disso após o diagnóstico por HIV. Até então vivia uma vida comum.
O vírus do HIV entrou na minha vida assim, para ter que discutir direitos, para entender essa diversidade toda. E ir para outra linha, não da caridade – a qual eu era na igreja. E sim na questão da garantia dos direitos mesmo e de entender toda essa diversidade que existe, respeitar e estar junto somando nessa luta.
O diagnóstico no começo foi um sofrimento muito grande e só quando me juntei com outras pessoas é que vi que a vida continuava. Sou fundadora da primeira ong de Aids no Estado de Roraima. Quando a gente fundou a instituição, tivemos que falar sobre todos esses temas: de garantia de direitos, de diversidade.
No início de nossa instituição, a gente andava em grupo. Eu andava com uma travesti, então fui taxada: “Olha, ela é a puta e a outra é a travesti”.
Boa Vista é uma cidade muito pequena – e na cidade pequena o preconceito grita e a modernidade não está. Tudo chega lá com muita demora. Com o diagnóstico de HIV, tive que passar por todas essas fases. Primeiramente, fui ajudada. Num primeiro momento, o HIV foi a pior coisa do mundo. Depois eu só me fortaleci, venho me fortalecendo a cada momento.
Em relação ao HIV, 20 anos depois, claro que as coisas agora estão muito mais fáceis. Na questão de negros, índios, quilombolas a gente sabe que não melhorou quase nada. Existe uma luta grande que a gente tem que fazer parte, para que minimize e nossa voz possa ser ouvida.
Roraima é o menor estado do Brasil, fica lá no Norte, na divisa com a Venezuela e com a Guiana Inglesa. E um dos direitos que estão pautados hoje é a vinda dos venezuelanos, diante da crise da Venezuela. A gente vê todo dia os direitos sendo quebrados – prefeitura jogando para o Estado, o Estado jogando para a prefeitura. Profissionais do sexo tomaram conta da cidade e tudo de forma desorganizada.
Falamos agora para que o Estado, o Município e as coordenações de Aids façam um trabalho. É um público que fala diferente, um público que às vezes a gente não consegue atingir, pelo espanhol. A gente precisa sinalizar, pensar em alguma coisa bem específica para esse público que está colocado lá.
Deu um boom de uma hora para outra lá. A cidade mudou completamente, da noite para o dia.
A gente luta o tempo todo dentro da instituição. A gente garante o direito ao INSS, explica para as pessoas, a gente briga muito com o estado e município na questão do serviço prestado. Isso aí o tempo todo a gente vive em cima disso. A gente entra no Ministério Público, nossa instituição tem assessoria jurídica, psicológica e social.
Imagina uma cidade pequena, onde quase todo mundo se conhece. A pessoa que descobre o HIV, se ela for começar o tratamento no bairro dela, vai ser apontada. Porque a vizinha trabalha no posto, por exemplo. Então a gente vive lutando contra isso tudo. A vida inteira. E é muito presente numa cidade pequena.
A questão da religião é muito imposta também. É uma cidade muito religiosa, principalmente de evangélicos. A gente já ouviu de tudo.
O preconceito começou por mim mesma. Eu não me aceitava como soropositiva. Preferia dizer que tinha câncer. Foi muito difícil no começo. Mudei a partir do momento em que conheci uma outra mulher que tinha HIV e estava bem, tinha um cabelão.
A partir do momento em que a pessoa encontra um apoio, ela consegue sofrer menos. E é isso que a gente faz dentro de nossa instituição. Com grupo de autoajuda, adesão ao tratamento, para que a gente possa minimizar o sofrimento das pessoas que chegam. Para que o mais rápido possível ela saia daquela clausura, do preconceito e levante a bandeira.
Eu vi que existiam outras pessoas e eu não estava só. Me indicaram outra pessoa e quando cheguei ela era linda. Aí pensei: não vou morrer não. Vou é ficar viva.
O mais importante hoje é o que a gente faz, o que a gente venceu, o que a gente conquista.
Entrevista concedida a Cristina Camargo e Simone Nascimento.