O psicólogo David Vieira de Araújo, do Fórum DCA, começou no ativismo na adolescência e até hoje, aos 29 anos, luta diariamente pela transformação social no Ceará. No caminho, encontra muitas barreiras, entre elas a violência, a falta de perspectivas para uma grande parcela da juventude e o preconceito.
Apoiado pelo Fundo Brasil, o projeto do Fórum DCA tem como principal objetivo incidir para que a o enfrentamento à letalidade juvenil seja prioridade na agenda governamental.
David fala sobre esse trabalho no nono depoimento da série #Defensorxs.
Confira:
O Fórum DCA (Fórum Cearense de Direitos de Crianças e Adolescentes) é uma rede que reúne várias instituições da sociedade civil organizada. A gente atua com o objetivo de defender e promover os direitos de crianças e adolescentes no estado do Ceará.
A minha história de militância começa na adolescência.
Sempre tive uma sensibilidade para causas sociais. E, na adolescência, comecei a ir para a área de ação social em um grupo de jovens.
Quando entrei na psicologia, descobri que havia toda uma área social – hoje me considero psicólogo social. Aí descobri o Nucom – Núcleo Cearense de Psicologia Comunitária da Universidade Federal do Ceará. Comecei a participar como extensionista, membro de grupo de estudo e a andar em comunidades, fazendo trabalho em psicologia social. E a psicologia social tem um pé muito forte na militância.
A gente busca a transformação social, a gente quer construir uma sociedade que seja mais justa, mais igualitária e resolver muitos problemas sociais. No final da minha graduação, fui para um projeto de extensão na comunidade Lagamar, numa instituição chamada Fundação Marcos de Bruin, que tem um compromisso social muito forte.
A instituição tem uma dinâmica de movimento social, parece muito mais um movimento social do que as organizações em que as coisas são rígidas, são duras, às vezes até hierárquicas. Continuo membro da fundação, como voluntário, porque é uma instituição que passa por muitas dificuldades financeiras e, enquanto membro, fui para o Fórum DCA, outro espaço que me encantou muito, porque você vê que o compromisso das organizações e dos militantes é muito forte.
Não só pela causa da infância, embora a gente tenha o foco na infância, mas o que se busca mesmo é construir uma sociedade mais justa, mais igualitária, com menos desigualdade social e menos injustiça.
O Fórum DCA atua no monitoramento do sistema socioeducativo, fazendo visitas, inspeções e também procurando defender crianças e adolescentes quando eles sofrem violência sob a tutela do Estado. A gente também atua na pauta do enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, discutindo questões que vão desde o machismo e a homofobia, mas também um desmonte da rede de atendimento. Toda vítima de crime sexual tem que passar por cinco tipos de atendimentos e todos têm que ser qualificados: atendimento social, psicológico, policial jurídico e o atendimento em saúde. E muitas vezes a rede não está estruturada, seja em procedimentos, seja em equipe, em orçamento, para conseguir garantir um atendimento de qualidade. O terceiro eixo, que é o mais consolidado, é o eixo controle social e orçamento, em que a gente faz um monitoramento de como está a execução orçamentária e a elaboração orçamentária na gestão municipal e na estadual também, embora ultimamente a gente tenha discutido muito mais a pauta municipal.
A gente propõe também emendas, intervenções, formas de tentar suprir as questões orçamentárias. Muitas vezes, pelo menos em Fortaleza, a falta de recursos é um conflito de alocação, quer dizer, você tem uma grande quantidade de recursos, mas eles são muito mais destinados para questões de segurança, comunicação institucional, aluguel de prédio e faltam recursos para outras áreas.
Um quarto eixo que está nascendo agora é o do enfrentamento à letalidade de adolescentes, porque Fortaleza é a cidade que mais mata adolescentes no mundo. Esse eixo é fruto de um trabalho do Comitê Cearense de Prevenção a Homicídios na Adolescência. Esse comitê, em 2016, fez um denso estudo e a partir desse estudo elaborou 12 evidências e 12 recomendações sobre como mudar esse quadro.
O Fórum DCA compôs esse comitê e depois a gente começou a ter uma preocupação muito grande de que essas recomendações tinham que ser implementadas. A gente criou esse eixo do enfrentamento à letalidade, inclusive o nosso projeto com o Fundo Brasil está dentro desse eixo.
Existe todo um histórico das inspeções. O Fórum DCA, desde 2014, 2015, tem feito um monitoramento muito grande no sistema socioeducativo. A gente tem feito denúncias a mecanismos internacionais.
Tivemos um caso muito trágico. Realizamos uma marcha pela periferia, em memória à chacina no bairro de Messejana, em que morreram 11 jovens, todos sem antecedentes criminais, exterminados. A gente fez essa marcha no sábado e na madrugada de domingo aconteceu esse novo episódio: quatro adolescentes, protegidos sob a tutela do Estado, foram assassinados, exterminados por facções.
Isso reverberou de uma maneira muito negativa porque já havia uma dificuldade dos centros de acolhimento e das medidas socioeducativas de receberem adolescentes que estavam sendo ameaçados, em situação de extrema vulnerabilidade, e essa dificuldade se acentuou.
A gente tem acompanhado e temos tentado incidir politicamente para tentar garantir uma maior segurança dos adolescentes, inclusive a gente fez um monitoramento esse ano do sistema socioeducativo, que comporta tanto o meio aberto como o fechado quando o sistema de justiça, com uma série de evidências e recomendações. A nossa luta é para que essas recomendações se efetivem. E para que a gente tenha um acesso maior a como é que as discussões são feitas. Muitas vezes elas são feitas sem uma participação maior da sociedade civil e dos conselhos de direito.
A gente tem um recrudescimento da Lei de Talião, do olho por olho, dente por dente. Isso traz uma dificuldade muito grande na medida em que os adolescentes e adultos que se encontram em conflito com a lei são desumanizados. Num primeiro momento, a sociedade de uma maneira geral considera que eles são os matáveis, os extermináveis, os descartáveis e, muitas vezes, seja quando o Estado fala em protegê-los, seja quando o Estado é o autor da violência contra eles, a população não liga, isso quando não aplaude. Isso torna uma dificuldade muito grande de a gente pautar o valor dessas vidas.
Nós não queremos que as vidas sejam descartáveis. Queremos que todas as pessoas encontrem situações melhores e possam ter vidas plenas de sentido e de possibilidades.
A gente tem um grande desafio que é o da consciência coletiva. A gente tem um problema, que é da desvalorização em termos orçamentários para jovens e adolescentes. As políticas, em geral, são sucateadas.
Em Fortaleza, a gente vem de uma realidade em que o orçamento, a arrecadação do município só aumenta, mas todo ano os recursos para políticas de crianças e adolescentes diminuem.
Aí a gente tem um grande círculo vicioso, porque já começa com a criança e adolescente que não tem uma educação de qualidade, não tem uma plena assistência social e é vítima de diversas violações de direitos. E para esse adolescente não existem políticas públicas que ofereçam possibilidades de crescimento e, quando ele cresce, não encontra outras formas de ser reconhecido, de dar um sentido, ser valorizado.
Em Fortaleza, temos 160 mil adolescentes que são os “nem, nem nem”: nem estudam, nem trabalham, nem procuram. Cento e sessenta mil adolescentes de 13 a 18 anos que estão lá, vivendo sem fazer nada. E que muitas vezes são vítimas de ação policial ou da violência urbana e muitas vezes essas vidas são desvalorizadas.
A gente tem um sistema estrutural com uma lógica que pega os adolescentes, principalmente os negros da periferia, e trancafia. Porque a gente considera que são sempre os perigosos, os marginalizados.
Está dentro dessa lógica manicomial, que é de prender o diferente, o potencialmente perigoso, e muitas vezes os adolescentes e jovens não são realmente perigosos.
A gente tem uma estrutura racista na sociedade que considera a população negra sempre um perigo. Muitas vezes, é a primeira coisa que acontece: o adolescente foi espancado pela polícia, não existe nada contra ele, mas a primeira coisa que acontece é especulação: provavelmente estava vendendo drogas. Aí pega uma foto de outro adolescente, que às vezes nem parecido é, mas segura uma arma. “Tá aqui, ó: ele estava segurança uma arma”.
Tem uma lógica racista e uma cultura de encarceramento em massa, articulada com a lógica manicomial, de estar prendendo, excluindo aquilo que foge um pouco à norma, uma norma inclusive elitista. E isso volta em um período em que os conservadores sentem uma grande liberdade de colocar as suas pautas e é uma análise que alguns movimentos fazem: eles estão desesperados por uma aprovação da redução da maioridade penal. É uma pauta que tem um clamor muito grande. Como os políticos, desde o golpe, estão com uma aprovação baixa, botam essa pauta de volta muito mais para ganhar alguma visibilidade popular.
Considerar o adolescente como sujeito político é também dar a opção a ele de não querer construir o formato que a gente quer. Às vezes ele tem outros formatos. E temos a expectativa de que eles querem formar outro movimento e a gente continue como parceiro, com pautas para além do enfrentamento à letalidade, mas principalmente visando o enfrentamento e a efetivação das 12 recomendações do Comitê Cearense de Prevenção a Homicídios na Adolescência.
O Fórum é composto por diversas organizações da sociedade civil e todas elas com uma grande marca em comum: nós consideramos os direitos de crianças e adolescentes como algo que é inegociável. O Estado tem o papel de promover e defender os direitos de crianças e adolescentes de forma integral.
Entrevista concedida a Cristina Camargo e Simone Nascimento.