Sobrecarga no trabalho doméstico, exposição à violência, dificuldades econômicas, racismo estrutural e institucional. A pandemia do novo coronavírus piora a situação social das mulheres brasileiras, desproporcionalmente afetadas pelo isolamento, pela falta de renda e pelo acúmulo de demandas.
“A pandemia expõe o padrão de desigualdade ao qual as mulheres estão submetidas”, avalia a advogada Denise Dora. Fundadora da organização feminista Themis, ex-conselheira do Fundo Brasil e atual diretora executiva da Artigo 19, Denise participou da roda de conversa virtual Mulheres no contexto da pandemia promovida pelo Fundo Brasil.
Para a assistente social Lúcia Xavier, fundadora e coordenadora da ONG Criola e também debatedora na roda virtual, a pandemia veio trazer “retrocessos galopantes”. “Quem está pagando a conta mais alta são as mulheres negras, que foram lançadas ao desemprego e tiveram seus direitos cassados. A empregada doméstica, a trabalhadora informal estão sem o direito à renda, sem o direito à saúde”, disse Lúcia.
A categoria profissional das trabalhadoras domésticas, com 92% de mulheres, 70% negras está entre as mais prejudicadas pela pandemia. Metade das pessoas no trabalho informal no país são mulheres, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e, nesta condição, elas ganham em média 73% dos rendimentos dos homens.
A conversa virtual Mulheres no contexto da pandemia foi planejada para dar continuidade ao diálogo iniciado em março, durante o brunch 8 de março: Mulheres em todos os tempos, que contou com feministas de várias gerações. O objetivo da série de conversas – que começou com encontros presenciais e, neste momento de isolamento, continua por meio de ferramentas online – é oferecer conteúdo de qualidade e apresentar mais sobre o trabalho do Fundo Brasil a pessoas que têm interesse em colaborar com a defesa de direitos humanos no país.
Discriminadas, sobrecarregadas e distantes do poder
Denise Dora lembrou que, neste momento em que o cotidiano se desmontou, o emprego e as chances de renda desapareceram, a desigualdade na divisão do trabalho doméstico joga sobre as mulheres o peso de reorganizar a vida da família, de cuidar da casa, das crianças e pessoas idosas. Muitas também dão assistência à comunidade. “Estamos vendo se materializar nitidamente aquilo que o movimento de mulheres no mundo todo sempre falou, a invisibilidade do trabalho em casa e fora dela, a vulnerabilidade, a exploração da força reprodutiva das mulheres.”
A advogada lembrou ainda que mulheres são minoria nas posições de poder e tomada de decisões. “O empoderamento que a gente vê é de uma minoria. A maioria não usufrui da igualdade liberal. Só 13% da população brasileira tem renda para declarar o imposto de renda, por exemplo. São esses filtros de cidadania que ficam dramaticamente expostos na pandemia, e afetam muito mais as mulheres”.
Recomendações sobre o enfrentamento à pandemia feitas pela ONU Mulheres no fim de março atestam a distância que as mulheres do planeta ainda estão em relação à equidade de poder com os homens: elas somam apenas 25% de parlamentares pelo mundo, e menos de 10% de chefes de Estado.
Lúcia Xavier falou sobre determinantes sociais que impactam os modos de nascer, viver e morrer da população negra brasileira. O acesso à saúde de negras e negros passa pelo crivo da discriminação, disse a assistente social.
“A questão da perspectiva de futuro não pode ficar de fora das nossas análises sobre como apoiar as ações que realmente permitam a participação das mulheres negras. A falta dessa perspectiva está atrelada às limitações na educação, no acesso à tecnologia, às políticas de seguridade social, participação na luta política”, disse.
Lúcia Xavier lembrou ainda que, para as mulheres negras de periferia, falta o básico. “Muitas não conseguiram alcançar o auxílio emergencial por falta de um celular com internet.”
Dados da vulnerabilidade
As ativistas lembraram que as mulheres estão mais expostas ao contato com o coronavírus nos trabalhos de cuidados com a saúde. As equipes de enfermagem brasileiras são femininas: mulheres são cerca de 85% das enfermeiras, auxiliares e técnicas, segundo pesquisa do Conselho Federal de Enfermagem.
A violência contra a mulher também foi debatida. Por todo o Brasil, os números deste tipo de violência aumentaram no contexto da pandemia. O estado de São Paulo registrou 44,9% mais ocorrências de socorros prestados pela Polícia Militar a mulheres vítimas de violência em março de 2020, em relação a março de 2019. A informação consta de relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 20 de abril.
O mesmo levantamento indicou aumento de 34,1% (março de 2020 em relação a março de 2019) nos casos de lesão corporal intencional contra mulheres no ambiente doméstico no estado do Rio Grande do Norte, onde os feminicídios aumentaram de 1 para 4 ocorrências nos mesmos períodos comparados. Os feminicídios cresceram ainda em São Paulo (de 13 para 19), Mato Grosso (2 para 10) e Acre (1 para 2).
O plantão judiciário da justiça do Rio de Janeiro registrou aumento de 50% nos atendimentos por violência doméstica contra a mulher logo nos primeiros dias do isolamento social, segundo divulgação feita pelo serviço no fim de março.
Possibilidades e caminhos
Denise Dora lembrou que apoiar as organizações de mulheres, neste momento, é urgente e indispensável. “A pandemia fragiliza também essas organizações, que realizam um trabalho fundamental.”
E, mesmo com todas as fragilidades, são as mulheres que, principalmente, se organizam para o enfrentamento à Covid-19, segundo Lúcia Xavier. “Investir e espalhar a ação política das mulheres é vigoroso para enfrentar a pandemia. Elas chegaram antes. Organizaram suas comunidades, mobilizaram ajuda. Sabemos que a pandemia vai demorar a ir embora, mas há aí um potencial de desenvolvimento, de atuação, que está com as mulheres”, avalia a coordenadora da Criola.
Para ela, investir no longo prazo em fortalecer socialmente as mulheres é o caminho para avançar na conquista e garantia de direitos fundamentais da cidadania. “Vale dizer: elas estão pensando no futuro. Elas ligam, têm um grande drama para contar, uma situação difícil. Mas aí, cinco minutos depois estão falando de futuro. Elas têm saídas. Espalham uma solidariedade que não é importante só no momento de pandemia, é importante para implicar outros atores, para pensar o depois”, disse Lúcia.
Na televisão
O Fundo Brasil também levou o debate sobre direitos das mulheres no contexto da Covid-19 para o programa diário Bom Para Todos, da TVT.
No programa, a ativista Amelinha Teles, fundadora da União de Mulheres de São Paulo e referência na luta feminista contra a ditadura militar, fez uma análise sobre as violências a que as mulheres estão sujeitas na pandemia, e falou sobre a importância das Promotoras Legais Populares para dar apoio às vítimas de violações neste momento.
A superintendente do Fundo Brasil, Ana Valéria Araújo, fez uma análise de estratégias que grupos de mulheres pelo país vêm adotando durante a crise atual, e que foram explicitadas pelos pedidos enviados ao Fundo de Apoio Emergencial: Covid-19.
Assista ao programa: