Entre os morros, ladeiras, becos e córregos do bairro Águas Cumpridas, um local discreto, mas bem conhecido pelos moradores, chama a atenção por promover ações de enfrentamento às vulnerabilidades da comunidade e, ao mesmo tempo, lutar contra o racismo religioso.
Uma escadaria estreita, no alto da rua Jardim Águas Claras, dá acesso ao Centro Social e Tenda de Umbanda Caboclo Flecheiro, que realiza uma série de ações em prol das famílias pernambucanas de baixa renda, mostrando que os terreiros têm um papel social muito significativo dentro do contexto em que estão.
“Nosso Centro Social funciona em um bairro periférico de Olinda e majoritariamente negro, com altos índices de vulnerabilidade social, cultural e educacional. Como estratégia de enfrentamento a esse quadro, realizamos ações sistemáticas e gratuitas, junto à comunidade. Na nossa religião, entre os principais ensinamentos, estão os valores comunitários e de união”, explica o babalorixá Pai Edson de Omulu, responsável pelo espaço.
A equipe do Fundo Brasil de Direitos Humanos realizou visita de monitoramento à organização, que é apoiada pelo edital Enfrentando o Racismo a partir da Base 2022, e conheceu a implementação do trabalho de políticas de combate à fome, à intolerância, à precariedade cultural e de direitos em um dos bairros mais violentos de Olinda, Pernambuco.
Missão social e direito à crença
Os terreiros das religiões de matriz africana são alvo constante das violências, intolerâncias e do racismo religioso, que tentam impedir a seus rituais e a adoração aos orixás.
Nos últimos dois anos, crimes em razão da religião aumentaram 45% no Brasil, segundo o Disque 100. Outros dados de fevereiro da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras mostraram que o alvo mais frequente de ataque são os cultos de matriz africana. E, neste período, quase metade dos terreiros brasileiros registrou até cinco ataques no mesmo período.
Na Casa Caboclo Flecheiro não foi diferente. As violências se agravaram em 2019. “Eu já fui perseguido por um vizinho e vítima do racismo jurídico, condenado há 15 dias de prisão por falsas acusações de sossego público; esta sentença foi derrubada em segunda instância. A partir desse nosso ativismo, o Ministério Público Estadual realizou audiência pública sobre o caso, e dela originou-se uma recomendação ministerial para o amplo respeito às Casas de Matriz Africana e Afrobrasileira em Pernambuco”, relatou o babá Pai Edson.
Mesmo com as perseguições, o Centro Cultural acolhe quem precisa. É assim, desde 2014, quando o espaço foi criado. Em uma das ações, seus voluntários arrecadam alimentos, transformados em cestas básicas e sopas que são distribuídas por comunidades de Olinda.
Biblioteca e oficinas para jovens e crianças
Em uma das salas do centro social, uma biblioteca comunitária tem o papel de formar leitores e incentivar o pensamento crítico dos participantes. São mais de 300 livros à disposição dos frequentadores. E tudo de graça.
“A biblioteca é afrocentrada, a nossa prioridade é atender o público jovem e infantil. Mas temos adultos também. Temos ainda livros da temática indígena, temática de terreiro, como parte do ensino da história da cultura africana. Temos jovens que vêm aqui se preparar para o vestibular, como crianças que procuram o primeiro contato com livros”, diz Sthefano Santana, um dos educadores do centro social.
No entanto, os 40 m² do espaço já não são o suficiente para atender às demandas sociais da comunidade. Por isso, o Centro Social e Tenda de Umbanda Caboclo Flecheiro está em reforma. E, para o atendimento a crianças e jovens não parar, tornou-se itinerante.
Os educadores vão até os locais para oferecer algumas ações. Há poucas quadras do Centro Social, na Escola Coronel Valeriano Eugênio de Melo, cerca de 30 jovens participam de Oficinas de capoeira, percussão e reforço escolar.
“Hoje, por exemplo, retomamos com eles várias leituras sobre direitos humanos. Queremos que eles saibam dos seus direitos, que são constantemente tirados deles, como o acesso à água, à educação, à saúde. Estamos com esse número de jovens, mas a nossa previsão é atender 50 até o fim do ano”, comenta Sthefano.
“Temos 120 famílias cadastradas hoje e que contam com o nosso trabalho. A gente chega até Sapocaia, Macaxim, por exemplo. A gente faz a doação e, no momento da entrega da cesta, a gente já oferece uma formação para as mães, pensando nos direitos delas. Nossa última conversa foi sobre a Lei Maria da Penha. A gente também faz a mediação de leitura com as crianças. E, até quem ataca a gente já precisou de apoio. E nós oferecemos sem distinção”, conta Edson.
Edital Enfrentando o Racismo a partir da Base
Para incentivar a permanência e a existência das organizações da sociedade civil, o edital Enfrentando o Racismo a Partir da Base 2022 é voltado para o fortalecimento institucional dos selecionados. A partir da escuta do campo, os grupos apoiados apontaram essa necessidade de garantir a sustentabilidade das atividades na promoção de direitos humanos.
Por isso, o Fundo Brasil tem lançado apoios de natureza flexível. Um dos focos do edital, que está em sua terceira edição, é apoiar organizações na defesa de direitos das religiões de matriz africana e combate à intolerância religiosa.
“Os recursos do edital representam a oportunidade que nunca tivemos para realizar uma intervenção qualitativa, segura e bem construída em nosso espaço físico, que ao final consolidará nosso Centro Social como equipamento cultural e educativo para o enfrentamento ao racismo no território periférico da cidade de Olinda. Iremos entregar à comunidade de Águas Compridas um equipamento cultural afrocentrado, gratuito e acessível a todos. Por isso, agradecemos ao Fundo Brasil”, finaliza o babalorixá Pai Edson de Omulu.