No dia 3 de setembro, um sábado, visitei o Acampamento José Lutzenberger, no município de Antonina, no litoral paranaense. A viagem foi feita a convite do meu querido amigo Carlos Marés, com quem iniciei meu duro aprendizado na tarefa de defender direitos indígenas no Judiciário ainda no final dos anos 80. Além de Marés, devidamente acompanhado dos seus jovens e entusiasmados alunos do mestrado e doutorado na PUC de Curitiba, faziam parte do grupo de visitantes os antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski, do Rio de Janeiro, a professora de direito da UFG Maria Cristina Vidotte e Sergio Leitão, do Instituto Escolhas.
Para chegar até o Acampamento, descemos de carro pela Estrada da Graciosa, construída ainda no tempo do Império, antiga ligação de Curitiba com os portos daquele estado. Graciosa hoje é o que se chama de uma Estrada Parque, protegida pela legislação, onde é proibido, por exemplo, o tráfego pesado de caminhões. Ao percorrê-la é possível perceber a exuberância e toda a beleza da Mata Atlântica, com suas árvores de copas majestosas, sequências de hortênsias, além de fontes e riachos que escoam água pura vinda do alto da Serra do Mar. Creio que apreciar de verdade a paisagem só é possível em situações como essa, já que quem percorre as estradas atuais de descida para o Litoral na Serra do Mar, antes de mais nada, precisa tentar dar conta da disputa de espaço entre o transporte individual e o de cargas.
O acampamento José Lutzenberger existe há cerca de 15 anos e foi constituído por trabalhadores rurais que há muito viviam naquele pedaço de Mata Atlântica. Eles reivindicaram a ocupação da área sob a qual incidia a Fazenda São Rafael, com 200 hectares de extensão, onde era explorada a criação de búfalos.
Para além do que já é comum nos conflitos fundiários no Brasil, como a dúvida sobre a legalidade e legitimidade do título de terra que ampararia o suposto direito de propriedade de quem se diz dono do imóvel, a este caso se acrescenta algo novo, que merece ser destacado: o debate sobre o mau uso que se faz da terra, ecologicamente falando.
Essa história começa pela introdução do criatório de búfalos na Mata Atlântica, prática que tantos problemas já causou na Ilha do Marajó, no Pará, e no estado do Maranhão. A região da Mata Atlântica onde está Antonina, em razão da floresta ainda contar com um alto grau de preservação, além das especificidades da topografia do local, tem um dos maiores índices de chuvas constantes do país. Isso faz com que o lençol freático ali se situe praticamente à flor da terra.
Nessas condições, o pisoteio de um animal de grande porte como o búfalo sobre a terra bastante umedecida faz com que a água aflore, cobrindo sua superfície, o que deixa o solo totalmente encharcado e impõe a completa modificação do funcionamento daquele ecossistema.
Junto com o búfalo, o criador traz o seu principal alimento, o Capim Braquiária, outra espécie igualmente exótica também chamada de “assassino de biomas”. O Capim se desenvolve de forma incontrolável e acaba por se transformar em praga, da qual é quase impossível se livrar. A Braquiária toma conta do terreno e não permite que nenhuma outra espécie subsista.
Foi por isso que, para os trabalhadores rurais que reivindicaram coletivamente a posse da área da Fazenda São Rafael, se iniciou uma dupla batalha: a luta pela terra e o enfrentamento dos efeitos da alteração das condições ecológicas do espaço onde viviam.
A luta pela terra continua ainda hoje na Justiça, com ações judiciais que se prolongam, deixando sempre uma sombra de ameaça de que a situação do Acampamento ainda possa sofrer uma reversão e os trabalhadores sejam expulsos de seu chão. Outra frente que visa solucionar a questão pela via da desapropriação no âmbito do Executivo Federal permanece também em aberto, com as idas e vindas da burocracia ditadas pela letargia governamental em resolver o que deveria ser prioritário.
Mas o que fazer com os búfalos e a Braquiária? Os búfalos foram retirados da terra onde está o Acampamento, embora permaneçam na região. Tive oportunidade de vê-los numa propriedade vizinha. Quando os búfalos se vão, porém, o capim fica, com todos os seus efeitos perversos potencializados, para impedir que qualquer outra planta viceje por onde ele estende os seus domínios.
Os trabalhadores rurais, fazendo uso de todos os seus conhecimentos mais tradicionais, fruto da longa convivência com a natureza, usaram técnicas que permitiram iniciar a recuperação de um espaço que tinha sido profundamente agredido e praticamente devastado. Não se trata aqui de mera figura de retórica e, para tanto, gostaria de comparar as duas imagens a seguir.
A primeira é uma foto da fazenda antes da sua ocupação pelos trabalhadores rurais que está pendurada na parede da casa que até então lhe servia de sede, como uma espécie de testemunho da devastação. A segunda foi tirada por mim e permite ver o mesmo lugar da foto antiga, agora completamente modificado pela recuperação da natureza, com o replantio das árvores e a volta da paisagem quase que original.
Tudo isso sem que a terra tenha deixado de ocupar o seu lugar como espaço para atividades produtivas, como assim a entendemos, onde se produzem coisas que são comestíveis, comercializáveis no mercado, ou na feira. A grande diferença está, portanto, em ser possível demonstrar que não é preciso fazer isso com a destruição do ambiente.
Hoje, uma parte da produção do Acampamento é consumida nas escolas públicas da região, comercializada por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), criado pela lei 11.947, de 16/6/2009, que estabelece que, do valor total que é repassado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para o Programa, no mínimo 30% deve ser utilizado nas compras de gêneros alimentícios provenientes da agricultura familiar (para saber mais sobre o Pnae no Paraná veja-se o artigo “Programa de Compras da Merenda Escolar com Foco na Agricultura Familiar: Uma Análise Espacial do seu Efeito no Desenvolvimento Socioeconômico Paranaense”, de autoria de Augusta Pelinski Raiher, Hermes Yukio Higachi e Alex Sander Souza do Carmo).
É bom que se diga que o PNAE se adequa completamente aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU (SAG15) na parte em que trata dos ecossistemas sustentáveis, que recomenda expressamente o aumento da “capacidade das comunidades locais de buscar oportunidades de subsistência sustentáveis”, amparado na “estreita relação com a natureza de muitas sociedades em desenvolvimento” (veja-se o artigo “Um círculo virtuoso pela preservação”, de autoria de Arancha González e John E.Scanlon, publicado no Valor, edição de 4/10/16, pág. A17).
Para produzir corretamente, o Acampamento José Lutzenberger simplesmente vem aplicando os ensinamentos do chamado SAF – Sistema Agroflorestal, que se baseia na forma de uso da terra onde árvores ou arbustos são utilizados em conjunto com o cultivo agrícola numa mesma área, e cujo plantio das espécies é escalonado no tempo de acordo com suas exigências e com a funcionalidade no sistema.
Neste caso, diversidade é a palavra-chave. Não se cultiva uma coisa só e sabe-se que ter árvores é igualmente importante para que as condições ecológicas de um lugar permaneçam, permitindo a integração das funções de cada uma delas. A vantagem dessa diversificação é a “forma como as plantas se ajudam”, como se pode ler no delicioso artigo “História e Plantas”, de Tatiana Levy (Valor, 16/9/16, pág.35).
Não é à toa que o nome do Acampamento é justamente o do agrônomo José Lutzenberger, ex-ministro do Meio Ambiente, falecido em 2002, que se destacou por chamar a atenção para os desmandos que a sociedade fazia com o meio ambiente: “Está claro que a espécie humana não poderá continuar por muito tempo com a sua cegueira ambiental e com sua falta de escrúpulos na exploração da Natureza”.
Foi interessante ver o uso do manancial de conhecimentos locais para dar conta de restaurar as funções ecológicas e domar o Capim que parecia invencível. Experiências como a do Acampamento precisam ser conhecidas para ajudar o Brasil na tarefa de recuperar o seu imenso passivo de florestas destruídas, aproximadamente 20 milhões de hectares, ao que estamos obrigados não apenas em razão da nossa legislação, mas também por sermos signatários do Acordo de Paris para a Proteção do Clima.
Trata-se de valorizar este como modelo do que pode e deve ser feito em várias regiões do país. O Acampamento Lutzenberger é a prova clara de que os trabalhadores rurais impactam positivamente a região e, como tal, devem ser vistos como exemplo de boas práticas capazes de garantir o uso sustentável da terra e de beneficiar o país como um todo.
Muito se fala da oposição aparentemente radical entre homem e natureza, o que por sua vez justificaria a impossibilidade do social conviver com o ambiental. Pelo menos em Antonina, no Acampamento José Lutzenberger, isso parece menos verdade do quem sempre poderá ter sido. O que se vê é uma comunidade usando todo o seu manancial de informações, a sua cultura aqui entendida como acervo de conhecimentos e práticas, para restaurar as funções ecológicas do lugar onde vive e garantir uma vida melhor. O antropólogo Marshall Sahlins diz que é preciso muita cultura para criar um estado de natureza. Parafraseando-o, podemos então dizer que sem cultura de fato é impossível recriar um estado de natureza.
Ana Valéria Araújo é coordenadora executiva do Fundo Brasil de Direitos Humanos