A ativista Maria Teresa Ferreira, do Momunes (Movimento de Mulheres Negras de Sorocaba), tem uma pequena empresa, cuida dos pais e do filho pequeno. Como muitas mulheres, divide o tempo entre a militância e as múltiplas tarefas. Mãe de um menino negro, ela sentiu há pouco tempo a sensação de despertar para a importância do enfrentamento à violência racista praticada no país.
Emocionada, Maria Teresa falou sobre sua trajetória no quarto depoimento para a série #Defensorxs, realizada pelo Fundo Brasil e publicada no site e nas redes sociais.
Confira:
Sou de Sorocaba e pensamos no projeto Enfrentamento da Violência Doméstica e os aspectos jurídicos da Lei Maria da Penha como instrumento de defesa, garantia e valorização da vida com recorte para mulheres negras, mas ele também inclui todas as outras mulheres e, na Lei Maria da Penha, nas suas especificidades.
São vários módulos: para mulheres idosas; para a juventude; para a comunidade LGBT; tem um módulo de saúde; um que trata da questão racial. Tentamos fatiar a Lei Maria da Penha para todas as espeficidades do gênero feminino.
Eu sou a mãe do Davi. E descobri que ser mãe de um menino, e um menino negro, tem um peso muito importante na minha vida. Porque a gente vive hoje o genocídio da juventude negra. Meu filho, apesar de ser muito pequeno, já é estatística. Isso me fez despertar para a importância de educar um filho, de ser mulher negra e educar um filho negro. Isso me fez redobrar os meus esforços dentro do movimento negro como um todo e dentro do movimento de mulheres.
Tenho uma empresa pequena em Sorocaba, de alimentos. Chama ‘Delícias da Casa’. Escrevo projetos para entidades do movimento social. E vou me dividindo entre a criação do meu filho, a empresa, o movimento negro e cuidar da minha mãe, que tem uma saúde delicada.
Isso mudou muito minha vida. Deixar de trabalhar 12 horas por dia e vir para dentro de casa me transformou em uma outra pessoa. Eu pude exercer a maternidade. Costumo dizer que a minha maternidade começou agora. Fui perceber a importância da maternidade e fui me perceber também enquanto mulher, enquanto mulher negra.
Uma coisa é você ser uma mulher negra e ter um emprego no Estado. Outra coisa é você ser uma mulher negra e não ter emprego. É tudo uma construção. Nos últimos quatro anos a minha vida tem sido reconstruída e redescoberta todos os dias.
As mulheres negras têm os mesmos problemas – em maior ou menor grau, mas os problemas são os mesmos. A violência institucional – você vai no posto de saúde e não tem médico para você e para o seu filho. Você vai atrás de uma creche e também não tem. Você vai procurar uma escola e também não tem vaga. Vai procurar um emprego, que seja um emprego legal. Mas para isso precisa necessariamente ingressar na faculdade para se formar e ter um terceiro grau. E ainda assim, quando faz todo esse caminho, com toda dificuldade, também não tem um emprego melhor.
Isso me fez perceber a necessidade de a gente se organizar, para que a gente possa ter voz para dizer à sociedade: olha, do jeito que está não dá. Nós somos muitas e temos muitas necessidades.
O Momunes, que é o Movimento de Mulheres Negras de Sorocaba, completou 20 anos. Começou quando a Maria José Lima, conhecida como Mazé, percebeu que a cultura negra estava só no samba. As pessoas só falavam de samba, só falavam de Carnaval. E o que era essencial, de onde a gente veio, porque a gente está aqui, e o que significa estar aqui, isso não existia em nenhum lugar da cidade.
O Momunes começa em um coral de mulheres negras. Eram mulheres negras que cantavam músicas no dialeto africano. E era muito lindo ver. Eu tinha 18 anos a primeira vez que vi o coral e fiquei apaixonada, porque eram todas mulheres negras, gordas, com aqueles turbantes enormes na cabeça, era um negócio lindo.
Elas se apresentaram em muitos lugares no Estado de São Paulo, no Palácio do Governo, foi um estouro de boiada como diz no interior.
Aí, a partir do coral, elas começaram a perceber a necessidade de transformar aquilo numa realidade para todo mundo. E, principalmente, a Mazé percebeu que aquelas mulheres do coral também eram mulheres que passavam pela violência que as mulheres negras passam. O coral passou a ser um momento de acolhimento, onde elas podiam conversar a respeito das suas vidas e ali entre elas acharem as suas próprias soluções.
Eu estava sempre junto com elas, porque na época a Mazé era presidente do Clube 28, que é o clube de negros da cidade. Então eu ajudava na feijoada, no feijão branco, na limpeza. Mas fazer parte do coral eu nunca fiz. Esse ano, como o coral fez duas apresentações e como eu estava no local, fui cantar junto com elas.
Quando a Mazé foi convidada para ser secretária da Cidadania de Sorocaba, o Momunes ganhou um edital para uma casa de acolhimento. Então hoje o Momunes tem uma casa de acolhimento para mulheres em situação de vulnerabilidade.
No meio do ano, ganhou outro edital para duas repúblicas para jovens saídos de orfanatos. É uma casa para meninos e uma casa para meninas.
Aquele trabalho daquelas mulheres de 20 anos atrás hoje está materializado em políticas públicas que voltam para a comunidade, trabalhos de acolhimento.
A gente tem procurado fazer tudo a partir do diálogo e de como essas mulheres chegam. Normalmente elas chegam muito fragilizadas. Não adianta eu falar: você apanha do seu marido, você larga do seu marido. A gente tem entendido que é necessário ouvir do outro qual é a necessidade.
Às vezes as mulheres só querem ser escutadas, só querem poder xingar o marido para poder se esvaziar e voltar para essa realidade. É óbvio que não é uma coisa que a gente acha legal, mas a gente tem aprendido que não pode forçá-las a nada.
Escrevemos esse projeto nesse sentido. De fazer com que elas tenham o maior número de informações possível para que tomem decisões. Sem perder de vista que a melhor decisão para elas talvez não seja a melhor decisão que o movimento quer tome.
A gente quer empoderá-las a partir da lei. Não adianta falar: ele não pode te bater. Ele não pode te bater por isso, isso e isso que está na lei. É pegar a lei e mostrar. É nesse sentido que a gente tem tentado ajudar essas mulheres.
Sorocaba é uma cidade extremamente conservadora e majoritariamente branca. Quando você tem um movimento de mulheres capitaneado pela força da Mazé, uma mulher negra, de olho azul, isso já demonstra a força que ela teve em se assumir uma mulher negra.
Esse lugar em que eu estou hoje em dia é de muita dificuldade. E de muita resistência.
Você precisa todo dia ter que falar para alguém: sou preta sim. E aí? Você vai conversar comigo, você vai bater a porta na minha cara, como é que a gente vai negociar?
Estar no interior é mais difícil ainda. Porque as mulheres que estão no interior são acostumadas com aquele status quo e está tudo certo. Quando você chega e fala: existem outras possibilidades de pensamento, a primeira reação é de repulsão. Elas não querem saber de você, ouvir o que você tem para falar.
É um lugar difícil, mas que ao mesmo tempo todo dia dá um gás de falar: vamos fazer. E o que é mais engraçado e o que eu tenho aprendido é que tem que fazer um dia de cada vez. E muito devagar. Não adianta chegar lá e falar: olha, a Ângela Davis escreveu esse livro e é super legal. Ela vai ficar olhando para a sua cara, pegar a bíblia e falar: Deus falou de outro jeito.
É tudo devagar, com muita paciência, muita perseverança e muito respeito à individualidade do outro.
No começo, tudo isso me afetava muito e eu ficava muito irritada e nervosa. Eu queria “vamos, vamos, vamos’. Porque sou muito assim.
A minha irmã costuma falar que eu não tenho sentimentos. Porque eu não fico chorando. Ela gosta de sentar na calçada e chorar. Eu falei para ela que a gente pode ir andando e chorando. Porque a vida não para. E conforme você vai andando e chorando, você seca a lágrima ou então a lágrima vai hidratando sua pele e você vai ressignificando a dor.
Entrevista concedida a Cristina Camargo e Simone Nascimento