Para o SOS CORPO – Instituto Feminista para a Democracia, a educação popular feminista é um caminho para construir um mundo do trabalho com mais direitos para mulheres. “De Pernambuco para o mundo”, a organização fortalece a luta de coletivos da região metropolitana, do sertão e agreste do estado, atuando em parceria na construção e execução de projetos voltados à emancipação das trabalhadoras em situação de precarização e informalidade.
Um destes projetos é apoiado pelo Labora – Fundo de Apoio ao Trabalho Digno. Envolve oficinas de formação sobre direitos trabalhistas e produção de pesquisa para obtenção de dados sobre a ausência de direitos e proteção social para as mulheres trabalhadoras em situações informais. A pesquisa resultará em um relatório qualitativo, que servirá de base para ações educativas, intercâmbio, alianças e advocacy.
Nesta entrevista, Natália Cordeiro, cientista política e educadora do SOS Corpo, fala sobre o papel transformador dos projetos que, segundo ela, “buscam enfrentar as estruturas do sistema capitalista e patriarcal, geradores de desigualdades e sofrimento”.
“Para enfrentar esse sistema, precisamos reaprender o mundo e pensar criticamente sobre ele”.
Labora – Como é ser uma organização feminista em Pernambuco, no Nordeste do Brasil?
Natália Cordeiro – Os pensamentos críticos do Sul e do Sudeste muitas vezes recebem mais valorização. No entanto, aqui no Nordeste, enfrentamos essa desigualdade na produção de conhecimento, buscando gerar saberes a partir de fontes além da universidade. Nós, do SOS Corpo, reconhecemos que existem diversas formas de produzir conhecimento além da academia.
Colocamos as questões feministas em destaque, sempre com a perspectiva de falar de Pernambuco para o mundo. O feminismo é uma chave de leitura poderosa para entender a realidade, seja ela micro ou macro. Enfrentamos o patriarcado, o capitalismo e o racismo de forma articulada, pois essas estruturas operam interligadas na vida concreta. Pautar o debate público é fundamental para transformar a realidade do mundo.
O SOS Corpo acredita na educação como forma de avanço da luta das mulheres. Como a instituição tem contribuído para esta transformação?
Um dos nossos cursos de formação política feminista, o Espiral Feminista, reuniu mais de 50 mulheres engajadas em organizações e frentes de luta do movimento feminista brasileiro. A educação popular feminista é um dos principais focos de atuação da SOS Corpo. Ela reconhece que o patriarcado, o racismo e o capitalismo moldam nossa política, economia e subjetividades. Para enfrentar esse sistema, precisamos reaprender o mundo e pensar criticamente sobre ele. Isso só é possível por meio de uma educação que valorize as experiências das mulheres, da classe trabalhadora, das pessoas negras e dos povos originários. A educação crítica nos permite enxergar o mundo sob uma nova perspectiva, identificando desigualdades e transformando revolta em luta.
O seu livro, editado pela SOS Corpo Edições, aborda, entre outros temas, o papel do Estado brasileiro na (re)produção das desigualdades entre homens e mulheres, pessoas negras e brancas, cisgênero e LGBTQIA+. Como o SOS Corpo vê o papel da filantropia para o avanço da luta pelos direitos das mulheres. Que ações práticas você pode citar que foram executadas pela SOS Corpo com recursos da filantropia?
Vivemos em um mundo onde as fronteiras são parte de uma geopolítica capitalista, patriarcal e racista. Para enfrentar esses problemas, a cooperação internacional é essencial. A cooperação internacional é uma ferramenta para enfrentar as desigualdades e viabilizar a construção de alternativas sustentáveis, contra-hegemônicas, criativas, de resistência e de luta. O SOS, apoiado por cooperações internacionais como o Labora, atua junto a trabalhadoras domésticas, costureiras, pescadoras, ambulantes, diaristas. Realizamos cursos voltados a estudantes, bancárias, mulheres com deficiência, dialogando sobre suas experiências nos territórios onde vivem e trabalham. No ano passado, realizamos um processo estadual de formação política em Pernambuco, abordando condições de vida das mulheres e formas de resistência. Estivemos em cinco regiões de Pernambuco: além da Região metropolitana, no Agreste, na Zona da Mata Sul, no Sertão do Araripe, no Sertão do Pajeú.
Além disso, continuaremos nosso trabalho com cursos de proteção social e direitos trabalhistas, bem como diálogos com outros movimentos sobre justiça reprodutiva e legalização do aborto, questões que são fundamentais para nós feministas.
O projeto apoiado pelo Labora envolve a produção de pesquisa sobre ausência de direitos, que está em andamento, e oficinas de formação para trabalhadoras. Você pode trazer aos leitores do site do Fundo Brasil um momento marcante?
Um momento marcante, foi, sem dúvida, o curso de direito ao trabalho e proteção social com trabalhadoras informais, trabalhadoras em situação de precarização do trabalho apoiado pelo Labora. Conseguimos juntar uma diversidade de mulheres que estão espalhadas por Pernambuco, mas que têm em comum esse lugar de trabalho precário, informal, desprotegido, sem garantias de direitos. Costureiras, diaristas, ambulantes, artesãs, algumas pescadoras. Foi muito potente conseguir reunir esse grupo. Essa é a possibilidade que o feminismo enquanto leitura para o mundo possibilita: de se reconhecer, de reconhecer pontos em comum e entender que existe uma estrutura comum operando sobre nós. Isso se refere tanto ao capitalismo, tanto ao racismo, como ao patriarcado. As atividades pedagógicas que foram realizadas trouxeram relatos da importância desse encontro. As diaristas estão presentes nas casas das pessoas, mas estão sozinhas. A maioria das costureiras trabalha em suas casas. Estar junto potencializa reflexão, fortalece o sentido de existência, de ser sujeito de direitos, trocar, ouvir e compartilhar experiências.
Boletim do Cesit/Unicamp (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho), produzido com apoio do Labora e divulgado no final do ano passado, destacou dados da Pnad Contínua/IBGE que trazem uma realidade conhecida. Mulheres negras são a principal força de trabalho em situação de desemprego, representando 36,6% do total de pessoas desempregadas (mais de 24 milhões). Como os temas da dupla jornada, da precarização e da informalidade impactam hoje a luta da organização pelos direitos das mulheres, sobretudo das mulheres negras?
A dimensão racial e a estrutura racista afetam fortemente as mulheres negras. O corpo da mulher negra é vulnerável à violência, desemprego e injustiça reprodutiva e socioambiental. Para enfrentar essa realidade, o feminismo deve ser antirracista e anticapitalista. Na vida concreta das mulheres negras, o racismo, o patriarcado e o capitalismo operam em conjunto.
No SOS Corpo, não se fala em dupla jornada, mas em trabalho intermitente. As mulheres negras acumulam trabalho reprodutivo e produtivo, tornando-as mais vulneráveis. Na hora da contratação, o empregador vai dar preferência a contratar um homem porque sabe que ele não vai precisar faltar porque o filho está doente, porque tem reunião da escola, porque não vai ter licença-maternidade. São as mulheres negras as primeiras levadas ao trabalho informal e precarizado porque não tem uma creche funcionando em horário integral para poder deixar as filhas e filhos. Essa precarização da vida é um desafio concreto para a organização das mulheres. Como que, além disso tudo, as mulheres vão se organizar para fazer a luta por direitos? Esse é um desafio muito grande.
Quais os desafios que o SOS Corpo vê como prioritários neste ano?
Desde 2015, vimos uma ascensão conservadora nos Três Poderes. A gente esteve o tempo inteiro nas ruas se posicionando contrário a isso e disputando o quanto havia de racismo, de patriarcado e de classe no processo que tirou a presidenta Dilma Rousseff do poder. Precisamos seguir em ações de enfrentamento a esta extrema-direita que mistura religião e política em ataques contra as mulheres e a população LGBTQIA+. O desafio é reunir fragmentos, refletir sobre experiências e abordar questões políticas, especialmente para mulheres negras, jovens, indígenas e trabalhadoras. Este enfrentamento é e continuará possível por meio de alianças entre diferentes grupos dentro do campo progressista. Isso inclui movimentos negros, feministas e sindicalistas de esquerda. Essas são questões prioritárias que devemos enfrentar neste contexto desafiador.