“Fale compassado porque ela está escrevendo”, pede um dos geraizeiros durante visita de equipe do Fundo Brasil de Direitos Humanos a comunidades tradicionais no Norte de Minas Gerais, em junho deste ano. O agricultor preocupou-se com a jornalista que fazia as anotações. E, numa frase simples, mostrou a gentileza que é uma das marcas do povo dessa região.
Servir biscoito de polvilho, café e rapadura foi outra forma afetuosa de receber a equipe. A visita fez parte das atividades de monitoramento da fundação. O projeto acompanhado foi o “Consulta Comunitária e Direitos Territoriais de Comunidades Tradicionais Geraizeiras”, desenvolvido pelo Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas Gerais.
Em torno de uma grande mesa, oito pequenos agricultores contaram parte de suas histórias e da luta de resistência no Vale das Cancelas contra a expropriação territorial promovida por grandes empresas plantadoras da monocultura do eucalipto, agora unidas a empresas mineradoras que avançam pela região de Grão Mogol e Alto Rio Pardo de Minas.
“Sofremos um processo de aculturação”, afirma Lourdes Francisco da Costa. Ela nasceu no Vale das Cancelas, foi embora com a família para escapar dos conflitos rurais e, agora aposentada, voltou para resgatar suas memórias e lutar pelo território tradicional.
“Na época, em 1974, saímos a pé e fomos parar em Montes Claros (a mais de 100 km de distância). Chegamos como mendigos”, lembra. “Após uma discussão no setor de migração, meu pai sumiu. Até hoje… Nunca mais vi meu pai”.
Foi justamente na década de 1970, quando a família de Lourdes precisou fugir, que começaram as violações aos direitos de comunidades com a chegada de empresas de monocultura à região. A instalação dessas empresas fez parte do projeto desenvolvimentista da época. As chapadas dos Geraes, onde tradicionalmente viviam os geraizeiros, foram invadidas e as comunidades obrigadas a viver encurraladas nas grotas. A região do Vale das Cancelas abrange 27 comunidades e 1.900 famílias.
Lourdes, uma lutadora que simboliza a resistência dessa gente, foi deixada numa família adotiva e perdeu o contato com os parentes. Aos 18 anos, reencontrou a mãe, ficou ao lado dela até a morte e então voltou para o Vale das Cancelas.
“O sonho da minha mãe era voltar. Mas não deu…”, lamentou durante a reunião com o Fundo Brasil.
Ela já foi ameaçada e teve a casa invadida. No entanto, não pensa em desistir. Costuma lembrar com saudade da vida antes da chegada das florestas de eucaliptos. Cita os folguedos, os rezadores, as bonecas de pano e milho, a ciranda, o leite com amendoim nas noites frias.
“Antes do eucalipto a nossa vida era melhor”, concorda Valdivino Correia, representante dos trabalhadores rurais. “Tínhamos nossas criações à solta, não tinha divisa. Quem colocou divisa e grilou nossa terra foram as empresas de eucalipto”, completa.
Os geraizeiros viviam da cultura do Cerrado, da caça, da pesca. Tinham pequenas plantações. Eram famílias autossuficientes, que vendiam a produção excedente de milho, feijão, arroz, frutas, café, rapadura, farinha, carne e ovos. Grande parte não possuía o registro legal das terras.
De acordo com o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas Gerais, a expropriação territorial por “encurralamento” desestabiliza as dinâmicas e práticas tradicionais e prejudica o acesso a recursos naturais, a criação de gado e o extrativismo pelos geraizeiros.
Com a chegada dos eucaliptos, as frutas do Cerrado diminuíram muito. O que sobrou não dá para dividir entre os animais e os geraizeiros. Todos ainda plantam, mas hoje os brejos e as veredas estão mais secos.
Quando o “desenvolvimento” chegou, os pequenos agricultores comemoraram.
“A gente não tinha noção”, conta um deles. “Lembro que um frei falou: vocês estão comemorando, mas vão ver no futuro o que vai acontecer”.
Vida bonita
O projeto no Norte de Minas Gerais é apoiado pelo Fundo Brasil por meio do edital “Litigância estratégica, advocacy e comunicação para a promoção, proteção e defesa de direitos humanos”, lançado em parceria com a Fundação Ford.
Já teve como resultados as informações levadas às comunidades tradicionais geraizeiras sobre seus direitos étnicos; assembleias de autodeclaração como comunidades tradicionais e demarcação de territórios; estratégias de defesa dos territórios e de advocacy aprimoradas por meio de intercâmbio com organizações camponesas da Guatemala; estruturação de um caso de litígio e advocacy; divulgação de informações para a sociedade regional, nacional e internacional sobre as violações que ocorrem na região.
“Foi a partir do processo de luta, das demandas da Justiça, que a gente foi entendo o que é ser geraizeiro e a importância disso”, afirma Orlando dos Santos, que faz parte do movimento.
As ameaças fazem parte do dia a dia dos ativistas, mas eles prometem não desistir. Querem a demarcação dos territórios tradicionais para poderem plantar, vender e viver do próprio trabalho.
“Meu sonho é resgatar nossa cultura, que não é só material. É imaterial também”, resume Lourdes.
A vida geraizeira é uma vida bonita, concluíram todos.